Brasil: Pátria educadora?

Brasil: Pátria educadora?

Dossiê – Brasil: Pátria educadora?

Leia texto introdutório do dossiê coordenado por Juvenal Savian, com artigos de Vladimir Safatle, José Giannotti, Maria Rita Toledo e outros

dossiê

por Juvenal Savian Filho

A educação continua uma preocupação central em nosso país.

Quando se fala do “problema da educação”, parece haver uma compreensão automática: falta de escolas e baixa qualidade do ensino público. Estamos tão habituados a repetir essa expressão, que ela parece designar alguma coisa evidente, que está aí para todos verem e que não muda há décadas.

No entanto, o cenário brasileiro mudou profundamente durante os últimos vinte anos em matéria de ofertas educacionais. O acesso à escola, hoje, embora ainda não seja garantido universalmente, é muito mais amplo do que nos anos 1980-2000. Portanto, a falta de escolas não é o elemento mais grave quando se fala do “problema da educação”.

Do lado da pesquisa universitária, mais do que nunca a educação permanece tema nuclear. O Brasil é certamente, hoje, o país em que mais se produzem trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre educação ou pedagogia. Mas a educação continua um “problema”. Ademais, no tocante ao papel da reflexão universitária sobre a educação, há um aspecto que deve ser destacado: as universidades públicas – que comporiam em princípio a instância exemplar de reflexão e o lugar natural de pesquisas a serem consideradas quando da concepção de políticas públicas – têm sido cada vez menos consultadas (desde o ministério de Paulo Renato Souza, como dizem alguns analistas). Em contrapartida, instituições privadas fortaleceram-se a olho nu nos processos decisórios concernentes à educação. Isso pode ser observado, por exemplo, no caso recente da parceria entre o Ministério da Educação e o Instituto Ayrton Senna para a definição de estratégias formativas e avaliativas. Não se trata de afirmar que iniciativas como essa são por si mesmas inadequadas ou indesejáveis; pelo contrário, um Estado democrático deve ter como ideal não apenas respeitar absolutamente a todos os seus membros, mas também ouvir a todos eles e acolher propostas que visem ao bem comum. Trata-se, antes, de perguntar por que especialistas reconhecidos, presentes em universidades brasileiras, não têm o mesmo papel que consultores privados passaram a ter nas políticas de Estado.

Fala-se muito, ademais, das estruturas de poder que se incrustaram no Ministério da Educação e representam poderosos grupos do mercado educacional. Sem todavia insinuar qualquer ligação entre o Instituto Ayrton Senna e essas supostas estruturas de poder, não deixa de ser sintomático o fato de a Coordenação para o Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) ter firmado com ele uma parceria para a criação do Programa de Formação de Pesquisadores e Professores no campo do que o instituto chama de “competências socioemocionais”. Redobra, portanto, a força da pergunta pelo porquê de buscar referenciais teóricos e estratégias de ação não na reflexão acadêmica, mas em instituições privadas que, para o bem e para o mal, acabam representando interesses menos universais.

No caso do Instituto Ayrton Senna, chama ainda atenção o programa SENNA (Social and Emotional or Non-cognitive Nationwide Assessment), avaliação em âmbito nacional de competências emocionais ou não cognitivas (socioemocionais), criada em conjunto com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organismo internacional que defende, por princípio, a livre economia de mercado. Não é ilegítimo pensar, então, que o tom da referida avaliação emocional ou não cognitiva, se for implantado no sistema educacional brasileiro, será dado pela crença neoliberal, podendo promover uma triagem de pessoas adequadas ou não à livre economia de mercado e mesmo engendrar um treinamento para ela.

Essa suposição não nasce de algum ideal anticapitalista nem pressupõe que alguma revolução vá virar em breve a esquina da História. Mas ela é pertinente exatamente agora, quando o mundo todo fala de regulação das práticas econômicas por causa do que Angel Gurría, secretário da mesma OCDE, já profetizava em 2012, no jornal Le Monde Diplomatique, ao dizer que nas economias avançadas a renda dos 10% das pessoas mais ricas vinha se tornando nove vezes maior do que a renda das pessoas mais pobres. No dizer de Gurría, o enfraquecimento da prática fiscal de redistribuição de renda e de transferência social de renda continuava a causa da ampliação do fosso entre ricos e pobres. Não vale, nesse contexto, citar a Alemanha como país onde a economia de mercado funciona bem, pois mesmo lá a população não suporta mais a prática da austeridade salarial. Vamos nós, então, avaliar as pessoas em função de competências pensadas segundo a dinâmica do livre mercado? Aliás, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), diante do programa SENNA, levantou pontos críticos precisos sobre o que se entende por avaliação, e posicionou-se contrária ao referido programa (ver a carta aberta da ANPED em: www.anped.org.br/news/carta-aberta-sobre-avaliacao-em-larga-escala-de-habilidades-nao-cognitivas-de-criancas-e-jovens). Resta saber se essa voz acadêmica também não ecoará no deserto.

O Brasil tem praticado redistribuição e transferência de renda; aumentou o número de escolas e universidades públicas; adotou, em diversos âmbitos, a política de cotas; enfraqueceu (ainda que muito pouco) o famigerado sistema do vestibular; fortaleceu programas de financiamento da formação superior privada etc. Todavia, ainda enfrenta insucessos flagrantes, como, por exemplo, o empobrecimento cultural e o embotamento das capacidades reflexivas e comunicativas. Há quem diga que o país forma gerações inteiras que mal sabem ler bulas de remédio ou manuais de instrução; e mesmo juízes penam para interpretar processos precariamente montados pela redação ininteligível dos advogados. Para recuperar o atraso, fala-se muito de preparação dos estudantes para o mundo da tecnologia e das exigências globalizadas. Mas essa preparação não pressupõe aquela do pensamento, da percepção do mundo e da responsabilização pela convivência? Seria a escola o lugar de treinar os indivíduos para o trabalho? A vida é só trabalho?

O governo federal adotou, para o exercício 2015-2018, o lema Brasil Pátria Educadora. Para contribuir com elementos relevantes no debate sobre a educação, este número especial foi redigido com redobrado empenho. Ele pretende perguntar com ênfase: o que falta para nosso país tornar-se de fato uma pátria educadora?

 

http://revistacult.uol.com.br/home/2016/02/dossie-brasil-patria-educadora/




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