BO contra Sartori
Professores registram BO contra Sartori: ‘fomos transformados em pedintes’
Luís Eduardo Gomes
Paola Ribeiro e Marcelo do Amaral Melo são um casal de professores estaduais. Ela dá aulas de História e Sociologia no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, no bairro Santana, em Porto Alegre. Ele, Geografia no Cel Afonso Emílio Massot, na Cidade Baixa. Até o final do ano passado, moravam, com os três filhos, em um apartamento na Rua João Alfredo, também na Cidade Baixa, comprado em 2011 e financiado em 15 anos. Como diz o velho bordão, realizaram o sonho da casa própria. Mas, após anos de salário congelado e pago parceladamente, se viram obrigados a deixar a casa para não perdê-la.
“A gente teve que sair da nossa casa, por não ter mais condições de sobreviver sozinhos. Hoje, a gente mora com um parente, que nos recebeu e nos auxilia”, diz Paola. A parente é uma tia de Marcelo, que os abrigou em sua residência na Rua da República, também na Cidade Baixa, enquanto eles alugam o apartamento. Com o dinheiro do aluguel e um complemento conseguem manter o financiamento e a possibilidade de não perderem o imóvel adquirido. “Ele seria leiloado e a gente perderia um baita investimento”, complementa Marcelo.
Na manhã desta segunda-feira, o casal e a filha caçula, Ágata, 2 anos, se juntou a um grupo de cerca de 80 professores de 34 escolas estaduais da Capital em um ato na frente do Julinho, que culminou com o registro de um Boletim de Ocorrência contra o governo de José Ivo Sartori (PMDB) por danos materiais e morais causados pelo parcelamento de salários dos servidores públicos, que já se repetiu em mais de 20 oportunidades.
“Desde 2015, a gente enfrente uma situação que é dramática de várias formas. Além do parcelamento, a gente tem o congelamento de salários dentro de um contexto de escalada da inflação. Então, o meu salário está congelado. Eu recebo o mesmo salário que recebia em 2015 e parcelado”, diz Paola.
Além de se ver obrigado a deixar o apartamento, o casal tem adotado uma série de medidas para conseguir enfrentar a situação. Marcelo, que dava aulas em uma escola na zona sul da Capital, pediu transferência para o Emílio Massot. Mais perto, consegue ir ao trabalho a pé ou de bicicleta em até 10 minutos. “A gente entrou nessa situação nefasta a ponto de não ter dinheiro para a passagem. Teve alguns momentos em que eu não fui dar aula em função de não ter passagem mesmo”.
Marcelo diz que sua tia também tem ajudado no pagamento de algumas despesas porque, diante da parcela paga na sexta-feira de apenas R$ 350, a menor desde que os parcelamentos começaram, tudo que entrou para ambos acabou sendo consumido pelas despesas pagas em débito em conta, como a luz e o supermercado, não sobrou dinheiro nem para comprar comida.
“Eu acho que o grave nessa situação é que, no momento, não existe nenhum colega, nenhum professor estadual que esteja se sustentando com o que ganha do Estado. É impossível. De modo que, ou conta com a ajuda de familiares, ou conta com a ajuda do esposo, da esposa, ou tem outro rendimento de alguma fonte externa, porque não tem como. No momento, nós estamos transformados em pedintes. Só não somos mendigos porque a gente não está na rua, efetivamente, mas temos que pedir dinheiro, itens necessários para a sobrevivência aos familiares”, diz Marcelo.
O caso de Paola e Marcelo está longe de ser raro. Funcionária da secretaria da escola José do Patrocínio, na Restinga, zona sul da Capital, Klymeia Mendonça Nobre conta que está com dois meses do financiamento da casa atrasado. “Por mais que você tenha reserva, ela se esgota. E agora então, como você vai pagar a luz, telefone, a prestação da casa? Não há possibilidade”, diz, acrescentando que também precisou fazer cortes em uma medicação que precisa tomar. “Como são remédios caros, já não consigo comprar. A gente vai procurando alternativas, mas chega um momento que não tem mais alternativas”.
Diante desta situação, ela conta que resolveu registrar o BO contra o governo por se sentir humilhada, desgastada e impedida de prestar um serviço de qualidade. “A grande vítima é a sociedade, porque nós, funcionários públicos, não conseguimos prestar um serviço de qualidade, a cabeça não permite. O grande responsável por isso é o governador que não cumpre com a lei em pagar os nossos salários”, diz.
‘A gente deve a alma para o Banrisul’
Se há algo em comum entre os professores que participaram do ato, é que todos têm uma relação com o Banrisul que foi se aprofundando nos últimos anos. Marli Cambraia, professora que se aposentou recentemente, diz ter acumulado empréstimos e dívidas com o banco por estar seguidamente no cheque especial. Sem condições de pagar em dia luz, água, condomínio e outras contas inadiáveis, ela diz que recorreu várias vezes ao Crédito 1 Minuto do Banrisul, modalidade em que o correntista pode contrair empréstimo de forma quase instantânea. Com isso, ela consegue não atrasar tanto suas contas, mas salienta que, como seu limite é baixo, nem todas elas conseguem ser pagas.
“Eu tenho uma psicóloga que eu tenho que pagar, porque não há mente que consiga suportar as dificuldades que são enfrentadas no cotidiano. Então, eu tenho muitas contas fixas e, a cada parcelamento menor, o desespero aumenta, porque tu não sabe como vai te virar para saldar os pagamentos fixos que tu tem”, diz Marli.
Em uma situação semelhante está o professor Francismar Alves, que dá aula de Ciências, Biologia e Física no Emílio Massot. Nos últimos dois meses, ele precisou contrair uma nova modalidade de empréstimo que o Banrisul tem oferecido aos servidores estaduais, o “adiantamento” de 90% do salário, com a cobrança de juros. A existência dessa modalidade causa indignação nos servidores. Como o governo não paga o salário e o banco público oferece o empréstimo no mesmo valor? É um questionamento feito por vários. Mas, para Francismar, essa foi uma opção melhor do que pagar os juros atrasados de outras contas.
“Eu fiz as contas, se eu tiver que atrasar condomínio, aluguel, vai dar juros maiores. Eu estou jogando assim. Meu telefone não para de tocar, cobrador toda hora. Muitas vezes eu estou em sala de aula, já deixo meu telefone no silencioso porque sei que todos aqueles números são de cobrança. São inúmeras, já perdi a conta de quando foi que eu entrei para o SPC, Serasa. Não tenho cartão de crédito, meu próprio Banricompras, que é um cartão popular do Banrisul, teve que ser cortado porque eu não posso mais parcelar, em função de estar sempre no negativo. Então, é uma situação muito complicada mesmo”.
Natural do interior do Estado, ele mora com uma filha, que está desempregada. Diz que, por sorte, mora perto da escola. Sem isso, talvez sequer tivesse condições de ir trabalhar. “Se eu tivesse que ter que pagar passagem de ônibus, eu não teria como dar aula mais. Eu me desloco a pé”.
Elisângela Aparecida Soares ainda consegue pagar a passagem para ir para o trabalho, mas não sabe até quando. Para fechar as 40h de carga horária e “ter um salário um pouco acima de R$ 2 mil”, fala baixinho, ela dá aula em três escolas da zona sul da Capital: escola Clotilde Cachapuz de Medeiros, no bairro Espírito Santo, escola José Loureiro da Silva, na Ponta Grossa, e na José do Patrocínio, na Restinga. “Atualmente, eu não tenho nem passagem, to usando o TRI da minha filha para poder me locomover, que ainda tem uns R$ 20, quando acabar não sei o que vai acontecer. Está bem complicado”.
Mãe solteira de duas filhas e moradora do bairro Hípica, também na zona sul, a professora diz que, desde o início do parcelamento dos salários, sua vida financeira “foi para o brejo”. Para poder pagar as contas básicas, precisou recorrer a um empréstimo no Banrisul, mas, diante dos seguidos atrasos, acabou precisando de outros empréstimos, uma situação que se tornou uma bola de neve. “Aí tu pede empréstimo, quita aquelas coisas, aí o parcelamento continua e tu continua atrasando, aí pedi outro empréstimo. Agora eu estou totalmente endividada e ainda recebendo parcelado, tu imagina como está a situação da minha conta”.
Caso de polícia
A decisão dos professores de registrar BO contra o governo parte de uma orientação do sindicato da categoria, o Cpers, que redigiu um modelo para que cada professor fizesse denúncias individualmente em delegacias de polícia do Estado depois do anúncio de que a primeira parcela seria de apenas R$ 350. No modelo, que foi entregue na 1ª Delegacia de Polícia Civil, localizado dentro do Palácio de Polícia, a argumentação é que os professores “vêm sofrendo prejuízo mensal em decorrência do descumprimento do pagamento dos vencimentos” e que o governo está descumprindo uma decisão liminar do Tribunal de Justiça que o obriga a pagar os salários em dia. No entanto, como os policiais civis, também afetados pelo parcelamento, estão fazendo operação padrão e só atendendo a flagrantes, ficou combinando que se abriria uma exceção e que seria registrado um BO conjunto como uma denúncia de improbidade administrativa.
“Queremos processar o governo em função dos danos morais, materiais e inclusive físicos e emocionais que nós estamos sendo acometidos”, diz Neiva Lazzaroto, vice-diretor do Emílio Massot.
Por mais que possa ser encarada como uma ação meramente simbólica, os professores dizem que não é possível mais continuar com a situação do jeito que está. Neiva, por exemplo, defende a deflagração de uma greve geral da categoria diante de uma situação em que muitas pessoas “sequer tem condições de ir trabalhar”, especialmente porque, mantido o status quo, a expectativa é que o cenário pode ser ainda pior nos próximos meses. “Eles vêm falando até em encontro de folhas. É preciso ter uma ação para reverter esse quadro, do contrário a gente vai acabar na situação do Rio de Janeiro, onde os colegas estão vivendo de doação de cestas básicas. Nós não queremos chegar nessa situação”, diz Neiva. “Eu defendo que a gente volte a fazer o que fizemos no governo Simon, eu sou dessa época. A gente fincou pé e só voltou depois que conseguiu negociar uma série de coisas. Porque, na verdade, dinheiro tem, não é possível. As isenções que foram aprovadas agora há pouco. Não sei quantos milhões de isenção, então é fundamental que a gente se una, a categoria precisa acreditar que tem força”, complementa Marli.
A indignação dos professores não é só contra o governo, eles também cobram o judiciário por não exigir do Estado o pagamento em dia dos salários. “A gente tem várias esferas de ilegalidade de um governo e a gente tem aquele sentimento, que acho que perpassa toda a sociedade, de que a Justiça só atinge a população pobre. No momento que eu não pago a prestação de um imóvel, eu posso ser despejada dele. Quando eu não pago a minha conta de luz, eu vou ter ela cortada. Mas, se o governo não paga o meu salário, nada acontece com ele, mesmo com liminares, mesmo com a Constituição dizendo que ele não pode fazer isso. Em que ponto a lei é para todos? Já que hoje é um slogan, mas mais um slogan midiático do que o que realmente acontece”, critica a professora Paola.