As nossas façanhas
Sartori, Forrest Gump e as nossas façanhas
por Ricardo Almeida
Forrest Gump – O Contador de Histórias é uma comédia dramática que proporciona algumas reflexões contraditórias sobre a história política dos EUA na segunda metade do século 20. No filme, o diretor Robert Zemeckis revela a existência de um olhar voltado apenas para o presente (imediato), para os chamados prazeres individuais, que deixam a construção do futuro para os “outros”, num mundo dominado pelo egoísmo, pela alienação, pelos selfies e pela reprodução dos hábitos de “celebridades”.
Apesar de ser uma personagem amável, Forrest vivia sem entender o que se passava à sua volta. No entanto, mesmo atrapalhado, ele acabou se tornando uma testemunha da história política norte-americana, pois estava presente “no momento certo” e “na hora certa”, quando fatos importantes aconteciam. Assim, na sua ingênua curiosidade, ele acabou fazendo parte da história, pois sua “participação” foi registrada pelas lentes dos fotógrafos e pelos jornalistas de plantão.
Nas poucas vezes em que falava o “soldado Gump” dizia que era fácil servir ao exército, pois bastava “fazer a cama direitinho”, “estar sempre em pé” e “responder todas as perguntas” dizendo: “Sim, senhor!”. Na vida real também existem pessoas que repetem tudo o que os apresentadores de rádio e de televisão dizem, sendo que algumas decoram os “chavões” da política e adotam lógicas excludentes (desde que não sejam elas as excluídas). Na maioria das vezes, sem a mínima noção de realidade, essas pessoas vivem apenas para satisfazer os seus prazeres imediatos, pessoais e egoístas.
A mãe de Forrest deu conselhos fundamentais para ele. Por exemplo, ela costumava repetir: “A vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar”. E Forrest interpretava (?) que ninguém poderia imaginar um futuro possível e que, por isso mesmo, não adiantava fazer reflexões sobre as possibilidades e nem sobre o destino que estava a sua frente. O seu nome, por exemplo, foi uma homenagem a um antepassado da família que fez parte da história norte-americana: era uma liderança da Ku Klux Klan.
De uma maneira trágica e divertida, o Contador de Histórias nos faz enxergar o mundo com os olhos desarmados e, ao mesmo tempo, com uma enorme vontade de desvendar os obstáculos e a complexidade da vida contemporânea. Uma vida caracterizada pela abundância de informações (televisão e internet), e também pelo surgimento de redes caórdicas de relacionamentos, pelo crescimento de valores egoístas e individuais, e pela triste proliferação de grupos de pessoas céticas, dispersas e solitárias.
Depois de assistir ao filme se consegue pensar melhor sobre as nossas escolhas, sobre a relação que temos com a família, com os amigos, com a história e com a política. No entanto, muitas pessoas preferem seguir a vida sem se comprometer com nada, e por isso mesmo não medem as consequências dos seus atos. Outras, idealistas, apenas fazem os seus protestos e morrem.
Numa sociedade dominada pelas mídias e pelas novas tecnologias estamos perplexos assistindo muitas verdades serem substituídas pelas aparências e pelas intenções do marketing, como se tudo fosse uma propaganda ou um produto a ser consumido. Nessa confusão midiática ficou muito difícil identificar a verdadeira intenção das pessoas e os valores que orientam as relações presenciais e/ou virtuais. Algumas pessoas até dizem querer mudar a vida, mas no fundo querem apenas manter os seus privilégios (status e cargos). Outras querem acabar com as diferenças na porrada, impondo a sua verdade e não aceitando o diálogo franco e maduro.
Elas estão pouco se importando com o método utilizado e distorcem o próprio sentido de cidadania e de amizade, pois agem como se não tivessem “compromissos” e “responsabilidades”. A palavra, o gesto e a intenção acabam se tornando “coisas” que perdem o seu sentido prático e sensível. Querem relações frias e impessoais, ou como se tudo fosse um verdadeiro “jogo de azar”. Mas, ao olharmos bem de perto, caso a caso, ouvindo e sentindo cada gesto, é que conseguimos perceber as diferenças, os resultados e também (é claro!) as confusões.
E o que o Sartori tem a ver com tudo isso? É verdade que ele adora falar dos conselhos que recebeu da sua mãe, que nunca sabe o que vai acontecer no futuro e que possui muitos seguidores… O que muita gente não percebe é que ele quer transformar as pessoas em verdadeiros “Forrest Gumps”. Ou seja, ele está tentando entrar para a história como um governador “Contador de histórias” e que segue ocultando as forças conservadoras e reacionárias que o apoiam desde a campanha política.
Quem acha que o governador é um Forrest Gump está muito enganado. Na verdade, ele faz parte de uma campanha de marketing muito bem pensada, que quer privatizar o Estado e vender o máximo do patrimônio público. É bom lembrar que Sartori era líder do Governo Brito na Assembleia Legislativa, e foi responsável pela péssima renegociação da dívida do estado com a União, que hoje ele tanto reclama. À época ele também apoiou a privatizações de empresas públicas, os planos de demissões voluntárias e também aprovou aquele famigerado modelo de pedágios. Agora, como governador, ele já tomou várias medidas “duras” que impactam na vida dos gaúchos e das gaúchas. Vejam algumas delas:
— Acabou com a Secretaria de Políticas para as Mulheres e criou uma secretaria especial para a sua esposa;
— Usou o helicóptero do Estado para compromissos particulares;
— Aprovou um reajuste de 45,9% para o seu salário (depois voltou atrás, em função da pressão popular), de 64% para seus secretários de governo e de 26,3% para os deputados estaduais;
— Atrasou e parcelou o salário dos servidores públicos, e responde na justiça por esse ato;
— Diminuiu o policiamento nas ruas em função do corte de horas extras dos policiais;
— Deixou de repassar recursos para hospitais e, com isso, os hospitais reduziram leitos, demitiram funcionários e baixaram a qualidade dos atendimentos;
— Suspendeu o pagamento dos fornecedores e dos prestadores de serviços, gerando desemprego em empresas terceirizadas;
— Encaminhou projeto de extinção da Fundação Zoobotânica e assim pretende desmantelar uma instituição séria, que contribui com conhecimentos essenciais para a proteção ambiental do estado;
— Assinou um decreto de regulamentação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Bioma Pampa com a nítida intenção de facilitar o agronegócio, aumentar as lavouras e acabar com os campos nativos remanescentes. Esse decreto está sendo contestado pelo Ministério Público;
— Não conversa com a imprensa após o anúncio das suas medidas amargas;
— Indicou pessoas sem a mínima experiência para áreas estratégicas do Estado, como a Secretaria de Administração, de Turismo etc;
— Empregou parentes de secretários e de deputados, e indicou secretários de estado para o Conselho de Administração do Banrisul, das empresas estatais, para aumentar ainda mais a renda dos seus amigos;
— Quer aumentar o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e de Serviços (ICMS) e, com isso, vai contribuir para aumentar o preço dos alimentos, dos combustíveis, da energia elétrica, da internet, e dos serviços em geral;
— Os deputados da base aliada aprovaram o projeto ironicamente chamado de “Lei Escola Melhor: Sociedade Melhor”, que abre a possibilidade de privatização do ensino público e tira a responsabilidade do Estado com a educação;
— Os seus deputados também aprovaram a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2016 e tudo indica que haverá um arrocho salarial, e todas as consequências que isso trás (greves e mais greves).
O governador disse que essas medidas representam apenas uma “sementinha” dentro das atitudes propostas para melhorar as condições financeiras do Estado, mas vemos que a população do Rio Grande do Sul já está começando a viver um novo pesadelo. A segurança pública está ameaçada, com um considerável aumento da criminalidade e dos assaltos, as escolas vivem momentos de incertezas e de manifestações diárias, milhares de pessoas estão ficando sem atendimento de saúde e alguns municípios suspenderam ou reduziram os atendimentos pelo SUS. As ameaças de atraso nos pagamentos e o parcelamento dos salários trouxe ainda mais insegurança para os servidores, que não conseguem planejar a vida de suas famílias.
Seria cômico se não fosse trágico… Vê-se que o Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade (PGQP), aplicado pela consultoria do empresário Jorge Gerdau, é um plano que trata as pessoas apenas como números e o patrimônio público conquistado pelos nossos pais e avós como bens totalmente descartáveis. No entanto, se os riograndeses recomeçarem a escrever a sua história a partir das organizações e das lutas sociais, e não ficarem apenas falando entre os seus e/ou criticando a figura caricatural do governador, essa camuflada estratégia política e midiática poderá ser desmascarada.
Ainda bem que, contraditoriamente, Sartori conseguiu unificar diversos setores contra o seu governo, e uma grande mobilização promete continuar até não se sabe quando… Tudo vai depender do grau de consciência e de organização que os gaúchos e suas lideranças conseguirem alcançar.
A vida ensina aos que lutam e sabemos que num futuro próximo, esses grupos econômicos que apoiam Sartori, assim como os seus silenciosos seguidores, terão que se explicar pelo novo sucateamento do Rio Grande. Pior é que não se trata de um filme e muito menos de uma peça de ficção, e que, portanto, todos nós seremos responsabilizados pelas nossas escolhas, silêncios e atitudes. É que as nossas vidas estão em jogo, assim como as vidas de nossos amigos, filhos, netos e vizinhos. É sempre bom lembrar que um povo que não tem virtude (e que não se organiza) acaba por ser escravo de políticos inescrupulosos.
.oOo.
Ricardo Almeida é consultor em gestão de projetos com uso de tecnologia da informação e comunicação.
http://www.sul21.com.br/jornal/sartori-forrest-gump-e-as-nossas-facanhas/