Aprendizagem não é saber muito

Aprendizagem não é saber muito

António Nóvoa: aprendizagem não é saber muito

Um dos principais pensadores da Educação contemporânea fala do papel do professor diante dos novos contextos

António Nóvoa
O português António Nóvoa é reitor da Universidade de Lisboa

A disponibilidade e a forma clara e simples como o português António Nóvoa, 60 anos, fala contrastam com seu currículo. Autor de mais de duas centenas de trabalhos científicos na área de História e Educação, é reitor honorário da Universidade de Lisboa e professor convidado em Colúmbia (Estados Unidos), Oxford (Inglaterra), Paris 5 (França), além de colecionar condecorações, como a da Ordem do Rio Branco, do Brasil. Fora as citações a outros pensadores e a segurança com que responde, seu discurso evoca para a sala de aula a recuperação do básico. “O professor tem de ajudar o aluno a transformar informação em conhecimento”, diz, resumindo em outro ponto que o bom profissional é o aquele capaz de “conseguir que, no fim, o aluno goste daquilo que, no princípio, não gostava nada”.

Para chegar a tanto, Nóvoa prescreve mudanças profundas na formação incial e continuada, maior participação da sociedade e que cada educador assuma seu papel de formador inclusive de si próprio e dos colegas. Em sua opinião, as novas tecnologias nos tornam personagens da terceira grande revolução da humanidade e é preciso “usar o potencial” delas, o que não substitui a necessidade de um bom professor.

Carta Educação: Em uma sociedade da informação, em que quase tudo pode ser buscado em textos e vídeos. Qual o papel do professor?

António Nóvoa: O professor tem de ajudar o aluno a transformar a informação em conhecimento. O que define a aprendizagem não é saber muito, é compreender bem aquilo que se sabe. É preciso desenvolver nos alunos a capacidade de estudar, de procurar, de pesquisar, de selecionar, de comunicar. Para isso, o professor é insubstituível.

CE: Apesar de termos no currículo disciplinas como Filosofia e Sociologia, é comum adolescentes reclamarem que a escola tem muito conteúdo e pouco espaço para pensar. Por que isso ocorre?

AN: A Filosofia e a Sociologia são fundamentais. Mas aprende-se a pensar em todas as disciplinas, das ciências às artes e às humanidades. É necessária uma pedagogia que coloque os jovens numa atitude de pesquisa, de procura, de resolução de problemas, em vez de lhes servir uma matéria já pronta e acabada. É inacreditável como, em pleno século XXI, ainda temos de repetir o que Montaigne já dizia no século XVI: é preciso ter uma cabeça bem feita e não bem cheia.

CE: Qual a prioridade, ensinar a pensar ou os conteúdos?

AN: Deve-se ensinar a pensar e a estudar. Mas isso não se faz no vazio. É preciso adquirir bases e fundamentos que nos permitam pensar e criar. Sabemos que o estímulo e a exigência desde a mais tenra idade criam bases e rotinas (de leitura, de cálculo, de pensamento) que nos libertam para outras aprendizagens. Dito de outro modo: quando as rotinas básicas são feitas “automaticamente”, a nossa atenção e energia podem concentrar-se noutras tarefas e atividades.

CE: Como o professor pode levar o aluno a pensar?

AN: Por exemplo, adotando os métodos da ciência: colocar problemas, fazer o diagnóstico, conhecer as diversas soluções, trabalhar com os outros, experimentar novas soluções, comunicar os resultados. Mas não era isso que Freinet propunha, há quase cem anos, quando falava de experimentação, criatividade, autonomia e cooperação?

CE: Quais evidências se vê na sociedade hoje de que a escola tem ou não ensinado a pensar?

AN: Muitas vezes, na Educação Básica, esquecemos que o conhecimento é a base da liberdade, da possibilidade de construirmos o nosso próprio percurso pessoal. Já na educação superior caímos, frequentemente, na tentação de formar “cultos ignorantes”, pessoas que sabem muito de certas áreas e nada das outras. Precisamos de novas concepções de educação. O modelo escolar, tal como o conhecemos, já não serve. A sala de aula, os quadros negros, os horários escolares rígidos, os professores a darem a matéria frente a uma turma de alunos, currículos, uniformes… Precisamos de uma outra pedagogia, a partir de duas ideias centrais: Primeira, construir um percurso individualizado e um acompanhamento próprio para cada aluno, permitindo que ele estude e trabalhe o conhecimento ao seu ritmo, no espaço escolar e noutros espaços e tempos, certamente em diálogo com os professores e os outros colegas. E segunda, assegurar uma forte participação dos alunos na vida da escola e também uma ligação mais forte com os espaços familiares e sociais, que vão adquirir nas próximas décadas uma maior importância na educação.

CE: Em que pontos as novas tecnologias ajudam e atrapalham os educadores em sua missão?

AN: Os educadores sempre tiveram resistências em relação às tecnologias por receio de que elas pudessem prejudicar o convívio e a proximidade entre as pessoas. A grande novidade dos últimos tempos é que as tecnologias se têm desenvolvido no sentido de facilitar a relação e a comunicação. Nesse sentido, contêm um importante potencial educativo, sem nunca substituírem “a educação de humanos por humanos para o bem da humanidade”, como diz Mikhail Epstein. Nenhum de nós ignora certos usos preocupantes das tecnologias, mas essa crítica não nos deve impedir de compreender a revolução que está em curso na forma como buscamos o conhecimento, como usamos o cérebro, como pensamos, como nos relacionamos e comunicamos, numa palavra, a revolução em curso na forma como aprendemos.

CE: Muitas pesquisas apontam para o uso de tecnologias para facilitar o trabalho docente ou para aumentar o interesse dos estudantes sobre um determinado tema. Como o senhor vê tais recomendações?

AN: Como diz Michel Serres, somos contemporâneos da terceira grande revolução na história da humanidade. A primeira, foi a escrita, há 6 mil anos. A segunda, foi o livro impresso, há 500 anos. A terceira é hoje, a revolução digital. As tecnologias fazem parte do dia a dia das novas gerações. Claro que têm de ser integradas na escola e nos processos de aprendizagem e que têm de ser objecto de uma reflexão profunda sobre a forma como devem ser utilizadas por professores e alunos.

CE: Uma corrente pedagógica acha que as escolas tem sido usadas com laboratórios de experiências. Em sua análise, quando uma política pública deve ser mudada para conseguir mais resultados de aprendizagem?

AN: É uma pergunta difícil. Por um lado, há muitos políticos que acham que basta fazer leis e reformas e não se apercebem que isto nada muda. Por outro lado, há a inclinação de muitos educadores para seguirem modas importadas daqui e dali. São duas tendências muito negativas, que, muitas vezes, transformam as escolas em laboratórios das políticas ou dos modismos. Mas é preciso manter nas escolas um trabalho de reflexão permanente, para ir encontrando as melhores soluções, os melhores caminhos. Nesse sentido, é impossível ser professor sem assumir uma atitude de experimentação, de procura, de inovação.

CE: Como o senhor vê as avaliações padronizadas aplicadas para que os conhecimentos entre estudantes, escolas, estados ou países possam ser comparados?

AN: São instrumentos muito pobres que pouco dizem sobre a vida escolar e o trabalho dos alunos. Mas não os podemos ignorar, por duas razões. Primeira, porque apesar da sua pobreza, têm uma grande visibilidade e podem ajudar a desencadear uma reflexão útil. Segunda, porque influenciam profundamente a maneira como a sociedade e os próprios alunos vêem a escola e os professores, o que é importante para a criação de um melhor ambiente educativo.

CE: Os professores reclamam da falta de formação para produzir aprendizagem? Como é possível preencher tal lacuna? Qual parte cabe a cada educador e quais outras a outras esferas?

AN: Tem de haver mudanças profundas na formação de professores. Na formação inicial, aproximando mais a universidade das escolas e das culturas profissionais, para que haja uma fertilização mútua entre a teoria e a prática. Na formação contínua, recusando formações por catálogos de cursos e instaurando processos de colegialidade e de cooperação nas escolas, em torno do trabalho pedagógico. Sim, ser educador é assumir também uma responsabilidade perante a nossa própria formação e perante a formação dos nossos colegas.

CE: Os professores também reclamam da falta de interesse dos estudantes pelas matérias. Até que ponto o professor é responsável pelo desinteresse e pode mudar esta realidade?

AN: Claro que pode. É isso que fazem os melhores professores – conseguir que, no fim, o aluno goste daquilo que, no princípio, não gostava nada. Conseguir que, depois do trabalho do professor, o aluno que não gostava de matemática passe a gostar de matemática. Mas, para isso, é preciso fazer também um trabalho de sensibilização no plano social, criando “territórios educativos” em que toda a gente se mobiliza para apoiar e valorizar as aprendizagens, como está a ser feito em municípios brasileiros.

CE: O Brasil vive um momento de propostas de reforma no Ensino Médio após mais de uma década de monitoramento de indicadores ruins. Entre as propostas estão agrupar disciplinas em áreas, flexibilizar o currículo e aumentar o tempo integral. O que o senhor acha?

AN: O Ensino Médio constitui, hoje, em todo o mundo, o nível mais problemático. Em muitos países, a escolaridade obrigatória alargou-se até aos 18 anos, mas temos dificuldade em saber exatamente o que fazer. Uma nova organização curricular parece-me uma medida acertada, bem como uma flexibilização do currículo. O tempo integral é importante, se não for para dar mais do mesmo, mas sim para construir novas dinâmicas de aprendizagem, de ligação à sociedade e ao trabalho.

 

http://www.cartaeducacao.com.br/entrevistas/antonio-novoa-aprendizagem-nao-e-saber-muito/ 




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