Ao que importa
No mesmo Congresso onde há propostas estapafúrdias inspiradas no Escola Sem Partido, tramita um projeto que altera profundamente o ensino médio
Antônio Gois - O Globo - 01/08/2016 - Rio de Janeiro, RJ
Nos últimos meses, provavelmente nenhum tema educacional foi tão debatido no Brasil quanto o Escola Sem Partido, a ponto de uma enquete no site do Senado sobre um projeto de lei inspirado no movimento ter batido recorde de votos, com mais de 360 mil manifestações. Em tese, os projetos visam combater a doutrinação ideológica nas escolas, em nome da “neutralidade política” e do “pluralismo de ideias”. No caso do projeto do Senado, esse caráter apartidário cai por terra quando o texto primeiro diz que é “direito dos pais que seus filhos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, para logo em seguida determinar que “o poder público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos”. Ou seja, religião pode, mas falar de identidade de gênero, não. Nada mais doutrinário e partidário, além de arcaico.
É compreensível que um projeto polêmico como esse desperte tantas reações. Porém, no mesmo Congresso onde proliferam essas propostas estapafúrdias -uma delas chega a prever até cadeia aos professores-, tramita sem alarde um projeto de lei que altera profundamente a organização do ensino médio. Trata-se do PL 6.840/2013, já pronto a ser votado em plenário, mas que provavelmente ainda sofrerá mudanças, após a sinalização de que o MEC pretende atrelar sua discussão ao debate sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Foi essa uma das razões que levou o MEC a adiar as discussões sobre o ensino médio no âmbito da BNCC. Não faria sentido aprovar uma nova base curricular sem ter certeza de que a proposta se encaixaria na nova estrutura que nascerá a partir do projeto de lei.
O texto no Congresso já previa uma flexibilização da trajetória dos alunos no ensino médio. Uma crítica recorrente ao atual sistema é o de que ele é engessado, com foco unicamente na preparação para o Enem ou vestibulares. Por isso, acaba fazendo pouco sentido, por exemplo, para uma parcela expressiva dos alunos que pretendem ingressar diretamente no mercado de trabalho.
Pela proposta, os currículos seriam organizados por áreas de conhecimento (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas), e o estudante poderia decidir qual caminho trilhar. Há pressão por parte dos secretários de educação para que seja incluída também a educação profissional como outra área possível a ser trilhada pelo jovem desde o primeiro ano do ensino médio. A proposta altera profundamente a atual estrutura curricular, exigirá mudança na formação de professores, e adaptação dos sistemas de avaliação. Algo, portanto, que pode realmente mudar, para o bem ou para o mal, a vida de ao menos oito milhões de jovens matriculados no ensino médio.
Há vários outros temas relevantes e com capacidade para impactar a qualidade do ensino. É o caso da própria Base Nacional Curricular Comum, das políticas de formação de professores, do debate a respeito do financiamento da educação e melhoria da gestão, apenas para citar alguns. Não se deve menosprezar o risco que o Escola Sem Partido representa, mas é triste constatar, como fez recentemente o ex-ministro da educação Renato Janine Ribeiro, o tanto de tempo que estamos perdendo com isso, deixando de dar a devida atenção aos temas que realmente importam para a melhoria do ensino.