Acabar com o ensino superior

Acabar com o ensino superior

4 análises sobre a proposta de acabar com o ensino superior gratuito

  • Beatriz Montesanti     31/Jul 

O debate não é novo e coloca em jogo questões como a desigualdade nas universidades e os direitos fundamentais dos cidadãos


A IDEIA DE COBRAR MENSALIDADE DE ALUNOS COM RENDA MAIS ALTA VEM HÁ ALGUNS ANOS SENDO DEBATIDA POR VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO, ACADÊMICOS E, CLARO, PELOS ESTUDANTES

Em editorial do dia 24 de julho, o jornal “O Globo” sugeriu o fim do sistema de ensino superior gratuito, chamando-o de injusto, já que parte dos alunos que ocupam vagas em cursos públicos tem condição de pagar pelo ensino que recebe. A proposta apresentada pela publicação seria cobrar mensalidades de estudantes de alta renda e conceder bolsas aos alunos de baixa renda. 

A ideia de cobrar mensalidade de alunos com renda mais alta na USP, na Unicamp, na UFRJ e na UnB, por exemplo, não é nova e vem há alguns anos sendo debatida por veículos de comunicação, acadêmicos e, claro, pelos estudantes das universidades públicas do Brasil.

Desde dezembro de 2015, tramita no Congresso um projeto de lei com o intuito parecido: propõe cobrar mensalidade de alunos cuja família ganhe mais de 30 salários mínimos (R$ 26,4 mil). 

Defensores da cobrança de mensalidade argumentam que o atual modelo educacional do Brasil funciona como uma forma de “distribuição de renda às avessas”, com pobres pagando, por meio dos impostos, os custos das universidades frequentadas por ricos.

Já defensores da educação gratuita argumentam que as universidades públicas são frequentadas, na maior parte, por estudantes pertencentes à classe média baixa. Para eles, há outras formas de combater a desigualdade nas instituições de ensino, que não prejudiquem a garantia de direitos fundamentais, como um ensino gratuito de qualidade.

O Nexo ouviu quatro acadêmicos sobre o tema. Dois deles são contra a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, dois deles são a favor. Veja abaixo seus argumentos a partir da seguinte questão:

Quais as consequências para a educação brasileira caso o país decida acabar com o ensino superior gratuito?

Contra a cobrança

Wilson Mesquita de Almeida

Professor adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC)

[A cobrança teria] efeitos perversos. Ampliaria ainda mais o fosso entre as classes sociais brasileiras, intensificando nossa desigualdade social que já é enorme. Primeiro, ela é inconsistente de partida ao utilizar um linguajar pouco preciso. O que quer dizer os "mais ricos" e "pobres"? O que são, concretamente, em termos de renda? Tais proponentes não dão respostas nem aprofundam informações sobre isso. Por quê? Porque se levantarem o perfil da universidade brasileira - e também nos países desenvolvidos - qualquer pessoa minimamente informada verá que o que predomina nas universidades é um perfil de classe média.

São nas universidades públicas e gratuitas - mesmo antes das atuais políticas de inclusão como cotas e bônus - que iremos encontrar o aluno com renda mais baixa e também negro, quando comparada com a universidade particular. Por quê? Por que além do prestígio das universidades públicas, a gratuidade é um elemento de suma importância quando o aluno com mais desvantagem social pensa em fazer ensino superior.

A questão é por que mais estudantes das camadas de baixa renda não acessam os cursos de mais alta concorrência? Aqui tem a ver, dentre outros fatores mais específicos, principalmente com aspectos estruturais que são a distribuição de renda entre as classes brasileiras e o declínio e ataque que desde os anos 1970 a escola pública vem sofrendo: falta de infraestrutura escolar, professores mal pagos e formados sobretudo no ensino superior de cunho lucrativo.

O que está em jogo é algo que começou, sobremaneira, desde os anos 1970 na educação básica e agora alguns segmentos sociais querem completar no ensino superior. Acabar com o direito social - duramente conquistado e longe de ainda ser o ideal dadas as imensas desigualdades de classe, raça e gênero ainda a serem enfrentadas - de ter acesso ao ensino superior gratuito.

Contra a cobrança

Vladimir Safatle

Professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP

Em vez de pensar um processo de reintegração social através da ampliação do acesso à universidade, eles [defensores da cobrança da mensalidade] procuram fazer a opinião pública compreender que o direito à educação pública gratuita é uma injustiça.

A USP tem 60% de seus alunos oriundos de famílias que ganham até dez salários mínimos. Onde está a elite nessa história? Dez salários mínimos dá R$ 8.000, um pouco mais. Para uma família que tem um, dois filhos, isso no máximo é uma classe média, média baixa. Sabe-se muito bem pelo custo de vida no Brasil que isso não representa elite em hipótese alguma. A USP não é a faculdade de medicina, nem a de direito, que aí sim têm uma concentração de renda maior. Com uma mensalidade de R$ 1.000, R$ 2.000, essa família vai tirar 20% do seu rendimento para pagar a educação de seus filhos. Isso é justiça? Dessa forma, cria-se um sistema em que a classe média, que sofre para colocar seu filho na universidade, teria que pagar para isso.

Se estivessem realmente preocupados em fornecer ensino de qualidade para o maior número de pessoas nesse país, estariam numa campanha para aprovar impostos sobre grandes fortunas para financiar a educação. Impostos como esse teriam de R$ 70 bilhões até R$ 90 bilhões por ano. Se o Estado de São Paulo quisesse realmente financiar suas universidades, ele aumentaria, por exemplo, o imposto sobre herança, que é um imposto estadual, poderia aplicar o imposto sobre jatos, helicópteros e iates. Há milhares de formas de financiamento do ensino público gratuito que seriam muito mais condizentes com uma exigência de solidariedade social.

A favor da cobrança

Naercio Menezes Filho

Coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper

Acredito que o fim do ensino superior gratuito teria um componente de justiça social, na medida em que os alunos admitidos que tiverem condições de pagar a faculdade não seriam mais subsidiados pelo Estado. Obviamente deveria haver um generoso sistema de bolsas de estudo para os estudantes oriundos de famílias mais pobres  ou que estudaram em escolas públicas.

Ao mesmo tempo, o pagamento de mensalidade provavelmente causaria uma redução nas matrículas dos alunos de famílias mais ricas, que poderiam optar por boas faculdades privadas nos cursos em que haja alternativas de bom nível. Isso provavelmente faria com que a qualidade da universidade pública nesses cursos declinasse, a não ser que houvesse uma reação das universidades públicas para reter esses alunos.

Vale notar que se 50% do total de alunos matriculados na graduação da USP (cerca de 60 mil) pagasse uma mensalidade equivalente a R$ 2.000 por mês, o total arrecadado seria de R$ 720 milhões anuais, cerca de 15% do orçamento total da USP, que é de cerca de 5 bilhões em 2016.

A favor da cobrança

Carlos Eduardo Gonçalves

Economista-chefe do site ‘Por quê?’ e professor licenciado da FEA-USP

A universidade pública hoje no Brasil, do jeito que funciona, faz distribuição de renda às avessas. A pessoa pobre não pode estudar na escola privada - e escolas públicas de primeiro e segundo grau de qualidade no Brasil são raras - e precisa fazer uma faculdade privada que, em geral, tem a qualidade pior do que as públicas. Quem é rico vai para uma escola boa, porque o pai pode pagar, e depois para uma faculdade pública, sem pagar nada.

O problema talvez com essa frase (“sem pagar nada”) seja as pessoas acharem que ensino público cai do céu. Ele não cai e é caro: tem que pagar laboratório, professores, bibliotecas. O custo por aluno na faculdade é muito mais alto que o custo no primeiro, segundo grau. E quem paga esse custo? Quem paga imposto. E quem paga mais imposto no Brasil? São os mais pobres, como proporção da renda. Então quem financia a faculdade pública gratuita dos ricos é o pobre.

A segunda parte dessa questão é: muitos dizem que a educação tem que ter financiamento público porque ela gera ganhos que extrapolam o ganho pessoal. É o que a gente chama de externalidade positiva em economia. Se você aprende a ler e escrever você volta melhor, você se torna um trabalhador mais produtivo e isso gera ganhos não só para você, mas para quem está ao seu redor. O impacto disso é grande para a educação primária, menor para a educação média e muito menor para a educação terciária. Quem vai para  a universidade majoritariamente vai se apropriar dos ganhos daquilo.

O sistema que seria operacional é o estudante rico pagar agora, o de renda média pagar um pedaço agora e o resto depois (como nos EUA) e o pobre ter um grande desconto e, o restante, também pagar depois.

 

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