A violência em nossas escolas
“A violência indica que algo não vai bem em nossas escolas”
Para socióloga, o caso da agressão a professora tem muito a dizer sobre a ausência de políticas públicas e sobre a dinâmica escolar
O caso de agressão de um estudante contra uma professora da rede municipal de Indaial, em Santa Catarina, ganhou ampla repercussão na última semana. Para além de lamentar o fato, a socióloga, pesquisadora e coordenadora da área de Estudos sobre Juventude e Políticas Públicas da FLACSO Brasil, Miriam Abravomay, o analisa dentro de um contexto social.
“Claro que esse episódio não deveria ter acontecido, mas ele sinaliza que algo não vai bem. Especialmente quando olhamos para as escolas, vemos que elas têm se mostrado muito problemáticas na manutenção de suas relações sociais, sejam entre alunos, de professor aluno e aluno professor”, avalia.
Para a especialista faltam dados sobre os casos de violência nas escolas, além de uma ancoragem das políticas públicas que teriam o papel de criar medidas preventivas a estas situações. “É muito mais difícil intervir depois que um caso como este acontece”.
Confira a entrevista exclusiva cedida ao Carta Educação.
Carta Educação: A violência nas escolas nas escolas vem crescendo?
Miriam Abramovay: Fica difícil afirmar quando não se tem base de estudos comparativos. O que vemos direcionado à área são pesquisas, estudos de caso que não têm continuidade, o que demonstra que o tema não é prioritário para as políticas públicas de maneira geral. Isso é uma demanda para os Estados e municípios e eles têm autonomia para assumi-la.
CE: Na sua opinião, a escola apenas reproduz a violência presente na sociedade ou também é produtora de violência?
MA: A escola é permeada pela violência da sociedade, estão colocadas aí as questões de desigualdades sociais, as de ordem política e as colocadas no entorno, como é o caso dos confrontos do Rio de Janeiro que vêm atingindo de maneira contundente as unidadesd, impedindo-as de funcionarem. As escolas reproduzem a violência da sociedade, mas não só isso. Elas também produzem suas próprias violências. O que vejo é que, no primeiro caso, fica mais difícil as escolas proporem soluções sem o aparato da segurança pública, mas o segundo é preciso ser tratado.
CE: Quais violências a escola produz?
MA: Uma delas é essa mais dura, prevista no Código Penal, que aconteceu com a professora. Mas há violências de outras naturezas, tais como micro violências que permeiam as relações sociais, como brigas e xingamentos; uma violência institucional que pode se manifestar pelos alunos, por exemplo, quando eles prejudicam o espaço da escola e da própria escola com os jovens, quando esta, por exemplo, os faz repetir de ano ou mesmo abandonar os estudos, quando impõe suas regras sem uma discussão prévia, ou ainda quando desconsidera a cultura juvenil no processo de aprendizagem. Ainda há a violência simbólica, produtora do machismo, racismo, homofobia e outras questões que inibem a identidade e o espaço do outro. A questão é que essas violências recaem sobre a qualidade do ensino ofertado, ou seja, torna esse ambiente não propício para uma educação de qualidade.
CE: Após o ocorrido, vimos que a professora foi praticamente transformada em ré por setores extremistas da sociedade, que a acusaram de doutrinação política com seus estudantes por sua postura política. Essa postura de alguma forma violenta os professores?
MA: A professora sofreu uma dupla violência, o que é lamentável. Vivemos uma época muito difícil, de inclinações fascistas como as orientadas pelo Movimento Escola sem Partido, que têm como objetivo calar os professores em sala de aula, sob um falso argumento de doutrinação. O que se defende é que esse professor tenha garantido seu direito de manifestar seu pensamento e o estudante o direito do que foi apresentado, em nome de uma formação crítica. Se essa professora tivesse uma posição extremamente conservadora ninguém ia reclamar dela. A questão é que em uma sociedade conservadora esses discursos caem como uma luva e acabam por tensionar ainda mais os ambientes escolares.
CE: Como você vê o tratamento ao estudante que praticou a agressão e o fato dele ter sido chamado de delinquente por parte da imprensa?
MA: Primeiro, é preciso considerar que desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) esse termo caiu em desuso. De fato, o garoto pode ter diversos problemas, mas o peso do termo delinquente cai sobre ele e sobre a juventude, de maneira geral, de maneira muito cruel. Isso corrobora de maneira irresponsável com o imaginário da sociedade que, de maneira geral, já cultua uma percepção negativa dos jovens.
Depois, precisamos avaliar o encaminhamento que foi dado ao caso deste jovem [o Ministério Público de Santa Catarina pediu à Justiça a internação provisória, em regime fechado, do adolescente]. Acho que isso só mostra que as escolas operam em uma lógica punitiva e que, no caso, pode piorar as questões deste adolescente. Me pergunto: é dessa forma que vamos resolver as violências existentes nas escolas e fora dela, só por medidas punitivas? Penso que o caminho seriam as medidas preventivas.
CE: Como vê as possíveis estratégias de enfrentamento à violência nas escolas?
MA: Há escolas que vêm conseguindo prever ações nesse sentido, mas volto na questão das políticas públicas. É preciso fazer um trabalho orientado para os professores, que faça uma leitura do mundo, da sociedade, das escolas e do que é ser jovem nos dias de hoje.
Por exemplo, estamos desenvolvendo via Flacso um trabalho junto às secretarias de educação de Fortaleza e Porto Alegre, sob financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que leva em conta dois pilares principais, a convivência escolar e a participação dos jovens.
Os jovens, de maneira geral, participam pouco das escolas, elas são feitas para eles, mas direcionadas para os adultos. A nossa ideia no projeto é capacitar os jovens para que sejam pesquisadores, realizem pesquisas de campo e depois indiquem em planos de ação o que querem mudar nas escolas.
CE: Com isso, o quanto da erradicação da violência escolar passa pelas próprias escolas reverem suas estruturas e dinâmicas?
MA: Reitero que esse caminho deve ser construído via política pública, mas não podemos desconsiderar o fato das escolas serem instituições muito autoritárias. Esse controle é mais fácil com as crianças, mas quando se trata de adolescentes e jovens isso fica mais difícil porque eles são conquistadores, têm adrenalina, acesso a um amplo repertório e querem, sobretudo, experimentar coisas novas. Então, também precisamos repensar a nossa educação e o que queremos com ela e possibilitar a participação dos jovens, ouvi-los, sob o viés de uma gestão democrática.
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