A tarefa docente

A tarefa docente

A tarefa docente: a arte do ofício na sociedade pós-moderna sob a égide neoliberal brasileira

WELLINGTON FONTES MENEZES*

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1. O palco despedaçado: um discurso sem lastro e o declínio do oficio

Há um discurso que beira a hipocrisia dentro de uma sociedade cada vez mais projetada com as trágicas lições do neoliberalismo à brasileira engajadas nas doutrinas do consumismo imediatista, satisfação instantânea e o narcisismo compulsivo em detrimento do olhar crítico perante aos dilemas da totalidade social. A retórica é que ela, a sociedade, estaria preocupada com a educação. Afinal, qual educação e para quem? Neste sentido, a Educação é vista como algo individualizada e movida à promoção do capital no que tange a destruição da educação pública e a louvação mercantilista da atividade privada, em especial, na Educação básica. Ao professor, destituído de sua função original, restou ser mais um operário das engrenagens fabris cheio de câmeras da mercantilização da cultura.

O sistema de educação básica é um retrato da sociedade brasileira que ainda flerta com um velho ranço do darwinismo social: injusto, desigual, excludente e voltado para agradar a clientela de todos aqueles que têm maior poder aquisitivo. Inúmeros são os problemas na área educacional de ensino básico e as soluções estão bem distantes de carecerem uma maior aplicação política por parte do Poder Público. Sintomaticamente, as carreiras voltadas à Educação seguem em baixa, tanto no seu prestígio social, quanto a remuneração por suas atividades. Nítido o déficit de professores em especial, nas áreas mais ligadas as ciências no ensino fundamental e médio.

O abandono de incentivo à carreira, as dificuldades operacionais e os péssimos salários comparado à outras carreiras de similares exigências de formação contribuem para uma explicação da baixa procura por candidatos aos cursos ligados à tarefa docente nas faculdades e universidades. A crise de autoridade do professor está na mesma esteira da crise de identidade típica dos fenômenos da Pós-modernidade, onde as certezas mais factíveis viraram transformações líquidas de um mundo cercado de muitas bugigangas tecnológicas, relações efêmeras objetais, massificação do consumismo e o transbordamento da angústia existencial.

  1. Uma arte mutilada pela avareza do capital e o descaso governamental

Fazendo uma analogia com uma consagrada assertiva de Simone de Beauvoir (1908-1986): ninguém nasce professor, torna-se professor. Pertinente lembrar a frágil formação dos cursos voltados para as licenciaturas, tendo em vista uma precarização de currículos e falta de estrutura para a formação dos futuros profissionais da área. A mídia também participa do papel de descaso do professor, além de transformar a profissão em motivo de chacota de programas humorísticos, transformando o docente em “pobre coitado”, digno de pena pública, cercado por um bando de imbecis com indagações patéticas, que seriam os alunos.

A educação com engajamento de reflexão crítica e humanista vem vertiginosamente perdendo espaço dentro da Educação Básica. O “conteudismo” é hoje a matéria orgânica que garante a sobrevivência das escolas da rede privada, quanto que no bojo da educação público é o sintoma do abandono por parte do Estado.

Para quem carece do sistema público, a cena é dantesca. É fundamental lembrar, por exemplo, em São Paulo, o maior centro econômico do país, onde vem repercutindo um alarmante e sistemático sucateamento do sistema estadual de educação, desestruturação sistemática da carreira docente aliada a altos índices de abandono da profissão, doenças emocionais, violência física e moral. Para coroar o circo dos horrores do governo de São Paulo, agora, aplicações uma irresponsável política de “reorganização escolar”, como prega a Secretaria de Educação local, que é o eufemismo perverso de uma insana política de fechamento de quase uma centena de escolas públicas. Por um lado, o governador culpa o atual modelo de “ajuste fiscal” que passa a economia nacional, por outro lado, nada mais é que a política de duas décadas sistemáticas com o descaso com a educação pública básica.

Agora, para os que podem sustentar arcar com os custos perdulários do sistema privado, o cenário não é nada motivador. Os caríssimos sistemas de ensino privado com todo um modelo de marketing de didatismo mecanicista oriunda da “decoreba” de conteúdos para os vestibulares aliados com alguns floreios “divertidos” para ocupar o tempo do aluno e justificarem o alto investimento das mensalidades por parte dos pais dele. De modo geral, o ensino básico do sistema privado virou um grande cursinho pré-vestibular cuja única meta é a promessa aos pais para uma vaga numa (boa) faculdade pública aos seus filhos.

Por outro lado, não se pode esquecer, a tarefa dos pais, dentro de um modelo de consumismo desenfreado, simplesmente se limitou a fazer uma burocrática transação comercial entre os filhos e a escola e, laconicamente, ponto final! Assistimos assim a terceirização das responsabilidades dos pais que são protocoladas em escolas bem remuneradas pelo suor dos seus “investimentos”. Não é a toa que se associa de forma pejorativa o termo oriundo da Economia, o “investimento” mercantilizado associado a um “fundo de longo prazo”, com elementos da Educação cujo slogan bem sintético é travestido em: “invista no seu filho para um futuro melhor!”

Ressalta-se que o reconhecimento profissional e social do professor é cada vez menor e é margeado pela política de produtividade perante seu oficio. A ideia de “bom professor” hoje é aquele que dá “show” na sala de aula, sobe nas luminárias e dá cambalhota e piruetas, que deve fazer de tudo para que o aluno, omisso e supostamente desinteressado, possa “assimilar o conteúdo”. Traduzido: professor bom para o “mercado” é o professor estilo mico de circo, um ator teatral e “antenado” nas piruetas das tecnológicas cujo efeito na Educação é muito questionável.

O leitor poderá argumentar: “o mundo mudou, a educação muda, tudo muda, afinal é assim que prega os meios de comunicação massivamente”! É preciso entender que o objetivo de uma educação com responsabilidade humanística e cultural é trabalhar com a estrutura e não uma superfície cosmética. Toda a tal mudança idílica apregoada por uma onda de ufanismo tecnológico, pouco fez para alterar substancialmente as gritantes disparidades sócio-educacionais. Logo, não é a máquina que deve (e jamais poderá fazer isto!) fazer o serviço que é emprego exclusivo e intransferível da sociedade. Nas mudanças dos papeis na educação, temos um mundo sem castração, sem fissuras e sem frustração. Assume-se então apogeu do narcisismo infanto-juvenil de louvar sua santidade: o aluno! Educar hoje virou sinônimo de submissão às desígnios do “aluno-tirânico”.

  1. A inversão de cena

Em grande parte das escolas, em particular o sistema de atendimento ao consumidor da iniciativa privada, em nada o aluno é vocacionado para ser minimamente cobrado de suas responsabilidades individuais e sociais, não há castração simbólica, mas somente a bajulação sistemática em agradar o aluno sem frustrá-lo.

A transição de modelos educacionais sólidos e rígidos, característicos da Modernidade, para modelos líquidos e imediatistas típicos da Pós-Modernidade foi avassalador, mas ambos ainda permanecem igualmente agressivos. O que era um conjunto de regras rígidas e coercitivas virou um festival de niilismo e consumo. A escola perdeu a força conjectural da transformação, ora virou um grande parque de diversões utilitarista, ou um celeiro de fomentação do vazio bárbaro, onde o aluno se ofender o docente é ele, o professor, que deverá beijar os pés do aluno para pedir “desculpas”. Caso o aluno não goste da “cara do professor”, ele corre imediatamente para a coordenação pedindo a “cabeça” dele. Nesta esteira, os pais, é claro (!), dão razão aos filhos, afinal são seus espelhos narcísicos perambulando no mundo midiático de “selfies” compulsivos! Uma pequena parcela dos pais mais histéricos, adentram à escola para apontarem o dedo em riste na cara do professor quando seu filho não for bem cortejado por ele, afinal “eu pago o seu salário”, diz sempre o pai-todo-poderoso vociferando como advogado do seu espelho-júnior. Logo, nas lições mercantis são fundamentais para o comércio, como bons clientes, para a escola preocupada com os lucros, o aluno e seus pais sempre tem razão! As tragicomédias do cotidiano escolar são inúmeras e não cabe descrever neste artigo para não se tornar das dimensões da enciclopédia iluminista de Denis Diderot.

Diante do universo de desconstrução do ensino, é cada vez mais comum o caso de agressões físicas por parte de alunos contra seus professores por motivos torpes e banais. Ademais, é mais um aspecto da sociedade pós-moderna, a incapacidade do sujeito em lidar minimamente com as frustrações de um mundo complexo e cheio de questões latentes.  Seguindo o lastro das dificuldades docentes, há um grande número de profissionais com sérios problemas psicológicos derivados da precarização do seu ofício e as angústias oriundas da pressão por parte de direções escolares com olhar da avidez capitalista e alunos agressivos ou tensões psicológicas típico do excesso de seres humanos confinados em diminutas salas de concreto armado.

Com o declínio do poder docente, menos pela ação dos seus profissionais, mas muito mais para um mundo que se tornou muito mais permissível a banalização do conhecimento e regrado por uma série de atrativos tecnológicos de expressividade questionáveis. A escola, na maioria das suas entidades, se comprometeu a simplesmente ser um passatempo dos alunos para que não ocupe o tempo dos pais. A ação lúdica é peça integrante da aprendizagem, todavia o seu excesso se torna pasteurizado e inútil. Afinal, o professor é “pago para cuidar dos filhos (deles)”, como muito se ouve em enfadonhas reuniões de pais mais exaltados com atitudes grosseiras perante o professor, o pajem terceirizado dos filhos.

Como foi destacada, a educação privada é uma engenharia para a produção de lucratividade enquanto que a educação pública, excetuando raros exemplos animadores, é relegada à sua própria sorte. Dentro do rol de desconstrução de uma educação mais emancipatória e reflexiva, outro sintoma que poderá ser destacado é o circo armado por parte da associação espúria entre empresas de formaturas e escolas e nome da diversão dos alunos a um alto custo: tudo vira festa, zoeira e irresponsabilidade em nome dos bons e garantidos lucros. Além de tudo, ainda temos o fantástico mercado dos cursinhos pré-vestibulares cujos lucros são muito atrativos e substanciais monitorados por empresas especializadas no ramo.

É fundante registrar: a fusão fanatizada entre a educação e o mercado é incompatível, uma vez que são elementos que não se combinam caso uma sociedade desejar construir um futuro mais humanista, menos desigual e não ficar presa às perversidades do dogma mercantil.

  1. Um futuro encoberto por uma cortina

A educação deixou de ser um bem público universal para se tornar mais uma mercadoria na feira de variedades do capital. Uma frase lapidar do grande educador brasileiro, Paulo Freire (1921-1997), dizia que “[…] a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda”. Neste contexto, apesar dos ataques sistemáticos que tenta manipular a Educação ora como mais um elo da produtividade capitalista de formação de produtos (no caso do ensino privado), ora como um elemento social sucateado relegado à sua própria sorte (no caso do ensino público), a tarefa dos docentes que toma seu oficio como significação de seus desejos, ainda resiste de forma valente.

A arte da educação como ofício é uma tarefa contínua, latentes responsabilidades e cheia de desafios. É fundamental recuperar as lições de Theodor W. Adorno (1903-1969), as quais a educação deverá se contrapor a barbárie e promover meios para a emancipação do sujeito. Certamente é um papel-fundante a ser desempenhado pelo professor no seu árduo ofício. Notadamente, a escola hoje parece não mais desejar fazer frente à barbárie uma vez que canibalizada pelo canto da sereia capitalista.

Diante do mercado do lucrativo sistema de educação, a escola privada simplesmente absorveu as lições mercantis e transformou sua matriz em mais um bem a ser consumido, enquanto que a escola pública vem regurgitando um lacônico e depauperado enfeite decorativo para passar o tempo dos seus alunos mais pobres com baixíssima expectativa de visão de futuro. Se o caminho for apenas entre estes dois parâmetros drásticos, a tarefa docente se transformará num mero entreposto burocrático, inútil e, muitos dos professores, como “prêmio simbólico”, levará ao adoecimento com sérios problemas físicos e psicológicos.

Para um alívio momentâneo, algumas ações pontuais ainda mostram que a situação não está completamente perdida, como mostram os exemplos, a revalorização dos institutos federais de Educação Básica por parte das últimas gestões do Governo Federal e os CEUs da prefeitura de São Paulo são modelos mais animadores. Os avanços dos últimos anos neste campo ainda são insuficientes para colocar a educação básica pública brasileira em um nível satisfatório, tanto para alunos, quanto para professores.

Em suma, por mais cínica que seja a construção ideológica momentânea presente numa sociedade, seus atores sociais entendem que por mais que seja desconstruída a Educação pela ação de um capitalismo desenfreado, somente ela é o alicerce social para qualquer estrutura humana que carece essencialmente da transmissão da cultura, seja ela mais elaborada, seja ela mais elementar. A tarefa dos atores docentes que se seguem na “aventura” da Educação como ofício, ainda lidam com desafios tão profundos quanto a fragmentação da própria estrutura da sociedade atual.

menezes* WELLINGTON FONTES MENEZES é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF); Professor universitário e da Rede Pública do Estado de São Paulo. Blog:www.wfmenezes.blogspot.com.br – Email: wfmenezes@uol.com.br

 

https://espacoacademico.wordpress.com/2015/11/25/3440/




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