A rotina das ocupações
A rotina das ocupações de escolas na Capital e as características do movimento em sete instituições
Para mostrar as diferentes formas de ocupações, o Diário Gaúcho visitou as Escolas Estaduais Ildo Meneghetti, José do patrocínio, Paraíba, Araguaia, Alcides cunha, Roque Gonzales e Radre Réus
Embora pedidos comuns unam estudantes das 33 escolas estaduais da Capital ocupadas neste mês – o número passa de cem em todo o Estado –, o movimento que nasceu para reivindicar o pagamento da autonomia financeira das escolas, protestar pelo parcelamento dos salários dos professores, tornar públicos os problemas estruturais dos prédios dos estabelecimentos de ensino, passando por queixas relacionadas à merenda (e seus exíguos R$ 0,30 por aluno), PL 44/2016 (que preocupa os estudantes, pois temem que a interferência da iniciativa privada seja uma espécie de privatização do ensino), entre outras motivações, tem a sua característica em cada escola ocupada.
Trata-se de uma manifestação até então inédita no Estado, que, junto à greve dos professores, está paralisando colégios e provocou uma reunião envolvendo a Secretaria Estadual da Educação, Ministério Público, Conselho Tutelar, entre outros órgãos, a fim de buscar uma forma de lidar com as ocupações e encaminhar soluções.
O Diário Gaúcho visitou sete escolas ocupadas na Capital nesta semana e mostra como se organizam. O que se vê é que umas servem de referência para as outras, há a intenção de um movimento unificado, mas algumas têm a participação mais ativa de professores como protagonistas, outras abrem espaço para a presença de estudantes de universidades, o apoio de sindicatos, partidos políticos, ongs e coletivos. Um movimento heterogêneo, que só deve ter fim quando todas as reivindicações forem atendidas.
— É uma experiência que nenhum de nós pensou em viver. Estamos aprendendo como pessoas e como alunos — diz Gisele Baumhardt Hartwig, 16 anos, aluna do segundo ano da Escola Estadual de Ensino Médio Roque Gonzales, no Bairro Cavalhada.
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"A escola é de todos, menos da diretora"
A Escola Professor Alcides Cunha, que atende 1,4 mil alunos dos níveis fundamental e médio no Morro Santana, foi ocupada no dia 19. Com dois meses de autonomia financeira atrasados, teve o telefone cortado por falta de pagamento, entre outros problemas citados pelos alunos que ocuparam o local.
— Temos um grupo de professores que é bem politizado, um grêmio e alunos que defendem a escola. Numa gestão democrática, a escola é de todos, menos da diretora – opina a diretora Elisabete Guedes da Silva, sobre as razões que levaram à ocupação.
Embora a direção tenha deixado claro que o movimento é dos estudantes, colocou alguns questionamentos ao grupo:
— Perguntei como vão se organizar em relação às demandas, o que eles pleiteiam e o que entendem por ocupação.No contato com a Coordenadoria Regional de Educação (Cre) e o Conselho Tutelar, a diretora buscou a orientação a ser seguida neste momento que é novo na educação: o responsável pela chave da escola, em tempos de ocupação, passa a ser um pai de aluno.
— Se ocorrer alguma coisa, é com o Conselho Tutelar ou a polícia — explica.
De acordo com a direção, pelo menos 70% da escola está paralisada por conta da greve. A intenção dos estudantes é, em breve, parar todas as atividades.
Mãe que está de olho na ocupação
Mãe de um estudante da sexta série do ensino fundamental, a comerciante Rosane Nicolau, 42 anos, está acompanhando de perto esta ocupação. Grávida de nove meses, tem passado algumas noites lá junto com o filho Pedro Eduardo, 13 anos. Conforme a organização, há em torno de 20 alunos ocupando a escola.
— Não basta ser mãe, tem que acompanhar. As pessoas ficam prostradas, só reclamando, mas ninguém faz nada. Então, peguei na mão dele e viemos levantar nossa bandeira — comentou Rosane, que cozinha para a gurizada com as doações que chegam.
— Quero a melhoria para a minha escola, para todos e para o meu irmão — argumenta Pedro Eduardo.
Idealizador da Biblioteca Comunitária Visão Periférica, no mesmo bairro, Sidney Júnior Costa Bispo viu na ocupação uma oportunidade de contribuir. Rodas de conversa, meditação, palestras, oficinas e a produção de um informativo estão preenchendo os dias dos estudantes que estão na Alcides.
— Soube da ocupação e vim oferecer apoio. Foi um movimento que nasceu no grêmio estudantil, apoiado pela biblioteca, pela rádio comunitária, que não segue um modelo — explica Sidney, citando que receberam visitas de alunos das escolas Paula Soares e Ernesto Dornelles, entre outras.
Resistência em busca de melhorias
Com regras claras – drogas, álcool e cigarro são proibidos, ninguém entra ou sai depois das 21h, a partir da meia-noite impera o silêncio e a alvorada é às 7h –, os alunos que ocupam a Escola Estadual de Ensino Médio Roque Gonzales, no Bairro Cavalhada, querem mostrar que o momento histórico na educação do qual são protagonistas é sério.
— Se a gente fechar a escola totalmente, a maioria dos alunos não vai saber o porquê de estarmos aqui. Antes disso, temos que explicar os motivos. E queremos mostrar que não estamos para vagabundagem — diz Igor Cruz Bueno, 16 anos, aluno do segundo ano, citando que a ocupação tem atividades como capina de pátio, varrição, corte de grama, debates e também uma oficina de ilustração, ministrada pelo cartunista Santiago, que a reportagem acompanhou.
Problemas de estrutura estão entre as queixas. Há apenas cinco computadores funcionando. No lugar da sonhada quadra poliesportiva, há um piso irregular, cheio de buracos, o recurso para a merenda não permite nada além de bolachas, entre outras pautas comuns às ocupações da Capital.
Igor explica que o movimento é independente. A opinião dos professores é ouvida, mas a decisão dos estudantes é soberana. O grupo não informa quantos alunos estão ocupando, mas eles passam o dia e dormem na escola – à noite, contam com a companhia de dois professores.
Eles vêm se mantendo a partir de doações da comunidade e de outras escolas como Padre Réus e Piauí. Em relação ao tempo que a ocupação irá durar, explicam que será até as demandas serem resolvidas pelo governo do Estado. Para tornar públicas as reclamações, um documento está sendo elaborado pelos ocupantes.
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Ensino fundamental também tem ocupação
Com uma classe diante do portão, os alunos anotam num caderno o nome dos visitantes que chegam à Escola Estadual de Ensino Fundamental Araguaia, no Bairro Aberta dos Morros, ocupada desde o dia 23, das 7h45min às 17h. Na biblioteca, explicam que estão organizando as regras de convivência, montando um cronograma das atividades a serem realizadas na escola e pedem para que o número de ocupantes não seja mencionado na reportagem.
A Araguaia atende 800 alunos. A comida vem sendo preparada por uma professora, e os alunos pretendem fazer um brechó no final de semana para garantir alimentos e explicar à comunidade os motivos pelos quais estão ocupando a escola.
— Nos surpreendeu muito (a ocupação) por sermos uma escola de ensino fundamental. A gente quer alunos críticos e autônomos. Isso nos enche de orgulho — afirma a diretora Márcia Chiaramonte Pahim, lembrando que chegou a pensar que a ideia fosse apenas um momento de empolgação.
Entre os motivos da ocupação citados pelos estudantes, estão o atraso da verba da autonomia financeira (paga só até março deste ano), o parcelamento dos salários dos professores, o recurso para a merenda (apenas R$ 0,30 por estudante), a necessidade da prometida quadra poliesportiva e projetos de lei que podem modificar a configuração da escola pública no Estado.
— Eles já deram tantas vezes a cara a tapa, agora é a nossa vez — afirma Lorran Fernandes, 15 anos, aluno da sétima série, vice-presidente do grêmio estudantil, referindo-se aos professores.
Os alunos têm a intenção de, em breve, dormir na escola, o que causa preocupação à diretora devido à segurança. Glenda Macedo, 14 anos, aluna da oitava série, conta que os estudantes estão organizados em grupos de trabalho, a exemplo da Escola Padre Réus, onde os alunos da Araguaia buscaram instrumentalizar-se. Para identificar, cada um usa pulseiras com cores correspondentes à responsabilidade: azul (culinária), branco (limpeza), preto (comunicação) e vermelho (segurança).
—Se a gente se unir, pode mudar as coisas — completa Glenda.
Lugar de luta
Referência para instituições como Roque Gonzales, Visconde do Rio Grande e Araguaia, na Capital, e até para escolas da Região Metropolitana que estão sendo ocupadas, a Escola Estadual de Ensino Médio Padre Réus, no Bairro Tristeza, vem adotando um sistema de organização dos estudantes em grupos de trabalho (GTs).
Esse modelo, conforme os responsáveis pelo GT de comunicação, foi inspirado nas ocupações paulistas e na atuação de estudantes do Colégio Júlio de Castilhos. A ideia é unificar as ocupações. Mas a Padre Réus é mais do que isso na avaliação dos alunos: "é uma escola de luta", como define Ana Laura Juk, 15 anos, do segundo ano do ensino médio, responsável pela comunicação da ocupação.
Essa seria a razão pela qual é referência para alunos de outros estabelecimentos de ensino, porque já trazia no currículo o incentivo à reflexão e busca pelos direitos. A ocupação começou no dia 12 de maio. Os alunos tomaram as chaves da escola, compraram corrente e cadeados novos e assumiram o poder.
— Recebemos muitas doações da comunidade, de coletivos. A gente tem mais visibilidade pela localização, então, tentamos ajudar a maioria dos colégios distantes, que não têm tanta visibilidade — diz Ana Laura, citando que alunos de várias universidades se ofereceram para realizar atividades durante a ocupação.
Ronda
Sete salas inutilizadas desde 2014, um ginásio que alaga sempre que chove, projetos de lei que modificam a educação no Estado, entre outras queixas estão na pauta que mobiliza os estudantes a ocupar a escola. Um documento será elaborado para dar ciência das reivindicações ao secretário da Educação, Vieira da Cunha.
— Vamos ficar até as reivindicações serem atendidas — promete Ana Laura.
Num quadro, estão expostas as regras de convivência: não entram drogas e álcool – os estudantes da ocupação são revistados, e inclusive quem desrespeitou a regra foi convidado a se retirar da escola –, há hora para acordar, o toque de recolher é às 23h e há alunos responsáveis pela ronda noturna, enquanto os outros dormem, entre outras orientações.
Theo Pagot, 16 anos, está no terceiro ano do ensino médio. Pretende fazer o Enem neste ano (quer cursar Física ou Geografia). Mesmo sem aulas, na ocupação estão acontecendo aulas como as de História do Brasil, Escrita Criativa, conversas sobre empreendedorismo, cidadania e saúde, entre outras. Nesta quarta-feira, a reportagem acompanhou uma aula de ioga no pátio.
Acesso negado à reportagem
Quem chega diante do portão do Colégio Estadual Engenheiro Ildo Meneghetti, na Restinga, encontra um cartaz com um telefone para ligar, caso tenha intenção de entrar na escola. No dia 23, a reportagem foi recebida na instituição por um aluno com uma prancheta na mão. Pediu nome completo, RG, telefone e assinatura dos visitantes. É ele que decide quem pode acessar as dependências da escola.
Como no mesmo momento membros do sindicato dos trabalhadores da Ufrgs e do comando de greve do Cpers chegaram para fazer uma visita, a reportagem entrou na escola, com a condição de não fazer fotos ou gravação. As professoras visitantes ouviram as necessidades e ofereceram apoio à manifestação.
O diálogo foi acompanhado à distância por uma professora da Ildo, que atende 1.970 alunos nos três turnos e está ocupada desde o dia 19. No entanto, a condução das negociações foi feita pelo aluno, que disse que só poderia falar com a reportagem informalmente, porque não havia agendado entrevista com a assessoria de imprensa do movimento.
No mesmo bairro, a Escola Estadual Ensino Médio José do Patrocínio havia sido ocupada no mesmo dia. Com os portões ainda abertos, a reportagem encontrou estudantes que informaram que não falariam com o Diário Gaúcho, "mas que não era nada pessoal".
No dia 24, diante da Escola Estadual de Ensino Fundamental Paraíba, no Bairro Aberta dos Morros, os ocupantes da instituição concordaram em receber a imprensa, mas foram impedidos por um professor de Educação Física que assumiu a interlocução, dizendo que era decisão do movimento de ocupações não atender nenhum veículo de comunicação (apenas estudantes de jornalismo interessados em documentar a ocupação), vetando os jornais do Grupo RBS.
A avó de um aluno do quinto ano da Escola Paraíba conta que a professora do neto de dez anos é uma das três docentes que ainda está lecionando na Escola Paraíba. No entanto, a avó não está mandando o neto à escola por medo.
— Falei com o Conselho Escolar e me disseram: "Vó, manda o neto para a escola e reza para nada acontecer". Como é que vou mandar uma criança para escola nessas condições? — questiona a mulher de 73 anos.
Na avaliação dela, os alunos estão à frente do movimento, mas sendo conduzidos por adultos.
—Estão fazendo a cabeça deles. Há outras maneiras de protestar — opina.
Reunião para encaminhar possíveis soluções para as ocupações
Na tarde de hoje, o secretário da Educação, Vieira da Cunha, receberá na Seduc membros da Defensoria Pública, do Ministério Público, do Conselho Tutelar, do Conselho Estadual de Educação e do Círculo de Pais e Mestres para tentar encaminhar possíveis soluções para as ocupações. Para o secretário, não pode haver o comprometimento do ano letivo.
— Quem quer estudar precisa ter o direito preservado. É um impasse e, para buscar a solução, queremos compartilhar com essas instituições. A postura é de construção de uma solução, de diálogo. Procuro a interlocução com eles (estudantes) — afirma Vieira.
O secretário reconhece problemas estruturais nas escolas e rebate as queixas com números: segundo ele, em 2015, o governo investiu R$ 91,5 milhões em obras e o previsto para esse ano deve alcançar R$ 200 milhões.
— É evidente o cunho político das ocupações. Estamos buscando um canal de comunicação com os estudantes para receber a pauta, estou à disposição para atender o que for possível. Se não houver reciprocidade, vamos ver que medidas serão tomadas. Tenho a esperança de resolver — conclui.
Oportunidade de aprendizado, diz especialista
De acordo com o professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos, Telmo Adams, a função da escola é oportunizar o acesso ao conhecimento. E isso está ligado a processos pedagógicos, que precisam ser complementados por mediações educativas. A experiência das ocupações, a convivência, as relações que se estabelecem podem ser elementos mediadores para uma reflexão mais ampla.
—Eles (alunos) estão aprendendo a elaborar suas opiniões e esse processo tem de ser potencializado pela mediação pedagógica — explica.
Conforme o educador, os professores podem auxiliar neste processo:
— Na vida, não é só o que se aprende nas disciplinas, mas no seu lugar como cidadão. A. A experiência de uma processo organizado é um momento muito rico de aprendizado.