A resistência dos professores

A resistência dos professores

 

A Conferência Nacional Popular da Educação, realizada em Belo Horizonte, busca ser uma resposta ao desmonte do ensino

por Karla Monteiro — publicado 04/06/2018 

A resistência dos professores

Caminhada pelas ruas de BH abriu o evento

Corria o ano de 1988. Depois de duas décadas de silêncio, o Brasil ouvia o barulho das mobilizações populares, com os diversos setores organizados em torno do debate constitucional. Naqueles dias de efervescência política, trabalhadores da educação iniciaram a luta pela inclusão na nova Constituição, promulgada em outubro, do Fórum Nacional da Educação, espaço permanente de diálogo entre a sociedade e o governo.

O FNE só sairia do papel 22 anos depois, em 2010, durante o segundo governo Lula, com a realização da primeira Conferência Nacional de Educação. Durou pouco. Depois do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o debate público foi ignorado e prevaleceu unicamente o interesse dos empresários do setor.

Assim, Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, resume o processo que culminou na Conferência Nacional Popular realizada entre 24 e 26 de maio em Belo Horizonte, com o intuito de retomar aquela agenda que enchia de esperança o Brasil recém-saído da ditadura. A pauta continua a mesma: uma participação coletiva em defesa do ensino público gratuito e de qualidade para todos.

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Do encontro, que reuniu diversas entidades profissionais da educação e 4,3 mil participantes durante os três dias, brotaram as diretrizes para a elaboração de um manifesto, batizado de “Carta de Belo Horizonte”. Trata-se de uma tentativa de influenciar o debate eleitoral.

“Havia uma lei que previa uma conferência nacional a cada quatro anos. Depois de muito protelar, o novo governo mudou o decreto de convocação da conferência. Reduziram drasticamente a participação da sociedade civil, de 42 para 18 entidades, e aumentaram o número de representantes do Ministério da Educação, que passou a ter maioria, uma aberração”, descreve Araújo. “Entramos com várias ações contra essa medida e não conseguimos derrubar. Então decidimos romper a farsa e criar o Fórum Nacional Popular de Educação para a convocação da Conape.”

Um pilar sustentou o debate nas diversas mesas que ocuparam o pavilhão de exposições do Parque da Gameleira, tradicional espaço de feiras na capital mineira: a volta ao caminho da democracia. Ou “o déficit democrático”, como definiu Gilson Reis, coordenador da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino.

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Araújo: 'O golpe nos atingiu em cheio' (Foto: Divulgação)

Segundo ele, estava claro para os mais de 4 mil participantes, representando entidades regionais, estaduais e nacionais de ensino, que um dos principais focos do golpe foi intervir na educação, com um conjunto de medidas para desmontar o ensino público. “Todas as reformas apresentadas até agora apontam nesta direção, da alienação de recursos à articulação com setores fundamentalistas, como o Escola Sem Partido, levando para a sala de aula um debate autoritário.”

Entre os assuntos da extensa pauta estava a PEC 95, ou 241, a depender da casa legislativa, considerada gatilho para a desarticulação em processo. A chamada “PEC do Teto de Gastos” estabeleceu um novo regime fiscal ao congelar os gastos do governo federal por 20 anos.

Com isso, conforme acreditam os organizadores da conferência, inviabiliza-se a principal conquista da organização popular em 2010, o Plano Nacional de Educação.

Aprovado pelo Congresso Nacional em 2014, o PNE traça 20 metas, entre elas, a universalização do ensino infantil e médio e o plano de carreira para os professores da rede pública. Estava previsto ainda o aumento gradativo dos investimentos em educação em proporção do PIB, com a meta de 10% em 2020.

Na contramão do que se pretendia, as matrículas do ensino médio tiveram queda de 2,5% no ano passado. Cerca de 1,5 milhão de jovens de 15 a 17 anos estão fora da escola, segundo o Censo de Educação Básica de 2017. “Na prática o orçamento foi dividido em duas partes: metade para as políticas públicas e metade para a rolagem da dívida. Isso implica uma redução dramática dos recursos para a educação, inviabilizando completamente as metas, uma conquista histórica nossa”, ressalta Reis.

A reforma do ensino médio, acrescenta, vem em segundo lugar no hall das questões que afligem a categoria, um retrocesso que divide os estudantes entre aqueles que vão ter acesso a “um ensino propedêutico” e aqueles que vão ter acesso a “um ensino técnico de baixa qualidade”: “Foi uma reforma curricular sem debate, feita de cima a baixo, estávamos discutindo há oito anos”, avaliou.

Sob a torrente histórica de ocupações das escolas públicas pelos estudantes, o Senado aprovou, em fevereiro do ano passado, a Medida Provisória 746, mais conhecida como a (contra) reforma do ensino médio. Entre as medidas mais controversas consta a flexibilização do conteúdo, retirando a obrigatoriedade de quatro disciplinas: filosofia, sociologia, artes e educação física.

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Reis: 'Querem criar duas categorias de estudantes' (Foto: Divulgação)

Outro ponto é a abertura da brecha ao ensino online. O governo chegou a cogitar a liberação de até 40% da carga horária total do ensino médio na modalidade de educação a distância, inclusive em plataformas privadas.

“Em 2016, todos os brasileiros de 4 a 17 anos deveriam estar matriculados. Chegamos em 2018 com 3,2 milhões fora da escola e temos 80 milhões de adultos que não concluíram a educação básica”, resume Araújo. “Para economizar, o governo federal mudou a base nacional curricular, autorizando os estados a aplicar parte do orçamento em ensino a distância.”

O cenário é realmente desalentador. O orçamento do Ministério da Educação para 2018 repete, praticamente, o valor do ano anterior: 107,5 bilhões de reais. O Congresso Nacional chegou a aprovar um recurso adicional de 1,5 bilhão de reais ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb, mas este foi o único item vetado por Temer ao sancionar a Lei Anual Orçamentária no início do ano.

Ao circular entre as mesas de debate durante a conferência, Nilton Ferreira Brandão, professor do Instituto Federal do Paraná e presidente da Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico, chamava atenção para a tragédia das universidades públicas.

De acordo com ele, para entender o ocaso é preciso voltar a 2003, quando o presidente Lula assumiu o governo e criou o Reuni, o programa de apoio a planos de reestruturação e expansão das universidades federais.

Instituído em 2007, o Reuni criou 132 novos campi e 18 novas universidades. Apenas entre 2005 e 2009, o número de matrículas nas federais aumentou 30%. O total de institutos saltou de 152, incluídos as escolas técnicas, escolas de aplicação das universidades e os Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet), no governo FHC, para 640 no primeiro mandato de Dilma.

“Houve uma profícua consolidação, com um processo de investimentos e expansão. Tudo tem sido descontinuado, e esse movimento coloca em risco esse legado. Nas universidades, o orçamento caiu de aproximadamente 13 bilhões, em 2015, para 5,9 bilhões de reais, em 2018. Nos institutos federais, a queda foi de 7,9 bilhões para 2,8 bilhões”, compara Brandão. “Em 2006, fizemos um debate sobre a carência de técnicos no Brasil. O País precisava, então, de cerca de 6 milhões de técnicos. A criação dos institutos federais multicampi, um por estado, foi um grande passo na democratização da educação.”

Segundo Brandão, o desmantelamento das universidades públicas é uma obra em progresso: “Não tem dinheiro. Pense em instituições jovens, com cursos em criação, que levariam anos para se consolidar. Na prática, essa política inviabiliza o ensino público. A meta do governo golpista, aliás, é só essa, basta olhar os investimentos”.

A Conape começou com uma marcha entre duas praças, da Liberdade e da Estação, dois palcos tradicionais de manifestações populares em BH. O evento de abertura contou com a presença de Dilma Rousseff. Os resultados da conferência foram sintetizados em um documento denominado “Plano de Luta”, com 14 tópicos que conduziram os debates. Além disso, a “Carta de Belo Horizonte”, em fase final de elaboração, será distribuída a eleitores e enviada aos candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais.

“Essa foi a ‘Conferência da Resistência”, com a efetiva participação social. O fórum era um sonho desde a Constituição de 1988. Conquistamos este espaço. O golpe nos atingiu em cheio”, arremata Araújo.

 

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