A privatização do ensino
A PRIVATIZAÇÃO DO ENSINO É A SOLUÇÃO? O CASO DAS ESCOLAS CHARTER NOS EUA
É comum no Brasil, inclusive pela grande mídia, a defesa da privatização do ensino como a solução definitiva para seus problemas, mas quais são de fato os efeitos práticos desse modelo?
Em agosto de 2005, o mundo parou, em choque, para olhar a cidade de Louisiana após a passagem do Furacão Katrina. Estamos falando de Nova Orleans, nos EUA, onde os severos impactos do Katrina mais foram sentidos. Imagens assustadoras noticiadas pelo mundo inteiro davam uma pequena proporção dos estragos, da dor e das perdas da população.
Segundo o USNews and World Report [1], o Katrina foi o terceiro furacão mais fatal na história dos Estados Unidos, ficando atrás apenas do Galveston, em 1900, cuja tragédia que provocou ceifou a vida de 8 mil a 12 mil pessoas, e do Okeechobee, em 1928, em que 3 mil vidas foram perdidas. No entanto, o furacão de 2005 foi, de longe, o que causou os maiores danos econômicos: foram cerca de US$108 bilhões (R$383,2 bilhões) de prejuízo. Pelo menos 1.800 pessoas morreram em decorrência do Furacão Katrina e 80% da cidade de New Orleans foi alagada no desastre.
O momento foi de consternação no mundo inteiro perante a catástrofe que se instalou na cidade. A culpa pelos diques rompidos foi assumida pelo Corpo de Engenharia do Exército na ocasião, porém, um ano após o desastre, revelou-se que o rompimento ocorreu devido à falta de manutenção e o uso de materiais de baixa qualidade [2], demonstrando também um olhar classista diante da situação emergencial: centenas de milhares de pessoas não conseguiram sair, principalmente nas áreas mais carentes.
Na época do ocorrido, diversas pessoas permaneceram na cidade em áreas de abrigos para os desalojados, como o abrigo da Cruz Vermelha, em Baton Rouge, onde também estava a jornalista e escritora Naomi Klein. Descrevendo o cenário desolador, Klein comenta no seu livro “A Doutrina de Choque” [3]: “durante semanas, a Assembleia Estadual da Louisiana havia ficado cheia de lobistas das corporações. Sim, um auditório repleto de gente que visava lucrar em um cenário de completo caos. Um destes ‘sábios’, um senhorzinho de baixa estatura, que aos 93 anos viu uma chance de colocar em prática uma política neoliberal na educação pública de Nova Orleans. Ele era Milton Friedman”. Klein ainda diz que “ouvindo aquela conversa sobre ‘novos começos’ e ‘terrenos limpos’ era quase possível esquecer o vapor tóxico produzido por entulho, fluidos químicos e dejetos humanos a poucas milhas dali, ao longo da estrada”.
O lucro na dor
Mesmo com a saúde debilitada, Friedman conseguiu escrever um editorial no Wall Street Journal[4] três meses depois que o Katrina deixou todo um rastro de destruição e morte em Nova Orleans, mas as mortes em si foram pouco tocadas no artigo do professor.
“A maior parte das escolas de Nova Orleans está em ruínas”, Friedman observou, “assim como os lares das crianças que estudavam ali. As crianças agora estão espalhadas por todo o país. Isso é uma tragédia. É também uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional”. O autor ainda segue mencionando que as escolas locais falham em qualidade no ensino como todas as outras escolas públicas “porque as escolas são de propriedade e operadas pelo governo. […] O governo decide o que deve ser produzido e quem deve consumir seus produtos, geralmente atribuindo alunos a escolas por sua residência”.
Impressionantemente, o discurso de Friedman, que se esquecia de tudo o que havia ocorrido ali, mais tarde foi replicado por algumas autoridades anos após o desastre, como do ex-secretário de Educação de Obama e um dos maiores defensores desse sistema educacional, Arne Duncan, o qual chegou a fazer a absurda declaração de que o furacão Katrina foi “a melhor coisa que aconteceu com o sistema educacional em Nova Orleans” [5].
O que o desastre fez foi permitir que legisladores estaduais e reformadores fora do Estado transformassem o sistema em uma escala sem paralelo. Quase todas as escolas foram convertidas em “charter”, que recebem fundos públicos, mas têm menos supervisão do que as escolas públicas tradicionais. Cerca de 7.500 professores sindicalizados e outros funcionários foram demitidos, muitos deles negros. O núcleo de ensino da cidade passou de 71% de negros, em 2004, para menos de 50% no ano de 2015.
Como menciona Friedman em seu artigo, era crucial que essa mudança fundamental não fosse apenas uma solução emergencial, mas se convertesse numa reforma permanente. Isso o Presidente Bush ouviu bem, pois sua administração, como conta Klein, sustentou seus planos com dez milhões de dólares para converter as escolas da cidade em “escolas licenciadas”; instituições fundadas pelo poder público e dirigidas por entidades privadas, de acordo com suas próprias regras.
Entre reformar o ensino e levantar a cidade destruída, o contraste foi gritante. Enquanto os diques, aqueles rompidos pela força do Katrina (além da falta de manutenção e materiais de baixa qualidade), tiveram sua reconstrução muito mais lenta, a reforma do sistema educacional avançou rapidamente. “Dentro de 19 meses, e com a maioria dos habitantes mais pobres ainda exilados, o sistema de escolas públicas de Nova Orleans tinha sido completamente substituído por escolas licenciadas, sob administração privada” (KLEIN, 2008).
Antes de Friedman elogiar publicamente no NY Times as escolas de padrão charter, elas já existiam, mas em menor número, e foi justamente essa “última” preocupação do professor antes da morte que recebeu mais e mais adeptos.
Escolas Charter — Público ou Privado? A educação sem pensamento crítico como Mercadoria.
O estudo “Guide to Contracting Out School Support Services: Good for the School? Good for the Community?” (em livre tradução: Guia para Contratação de Serviços de Apoio Extracurricular Externos: Bom para a Escola? Bom para a Comunidade?) [6] — de 2008, elaborado por William J. Mathis e Lorna Jimerson, ambos pesquisadores na área — aborda o debate sobre a privatização da educação básica nos EUA. Dissertam que a modalidade das escolas charter, que seriam instituições privadas com subsídio público e acesso gratuito, em alguns casos se credenciam junto ao setor público por apresentarem projetos pedagógicos “alternativos”. Por último, os autores anunciam um novo formato de privatização da educação pública que denominam de Educational Management Organizations (EMO), que se caracteriza pela criação de escolas charter por empresas lucrativas, em alguns casos se constituindo em “redes” de escolas charter.
Já o estudo de 2007 “Choosing a School For Your Child” [7] (Escolhendo uma escola para sua criança), produzido pelo Department of Education Office of Innovation and Improvement dos EUA, que corrobora com o trabalho produzido por Mathis e Jimerson, apresenta as escolas chartercomo escolas públicas que operam com liberdade superior a muitos regulamentos locais e estaduais que se aplicam às escolas públicas tradicionais.
Esse tipo de escola, por ironia do destino, foi idealizado por um professor, Ray Budde, da Universidade de Massachusetts Amherst, em 1974. Somente em 1991, o Estado de Minnesota foi o primeiro a aprovar uma lei da escola charter. A Califórnia ficou em segundo lugar, em 1992. A partir de 2015, 43 estados e o Distrito de Columbia passaram a ter leis de escolas charter, de acordo com o Centro de Reforma Educacional [8], mas curiosamente esse modelo chamou atenção de Friedman quando passou a alterar o caráter inicial da proposta.
Curiosamente, a Escola Charter fora pensada para ser uma escola liderada por professores e para acolher os alunos que fracassavam nas escolas tradicionais. Pensavam que poderiam contornar regras administrativas para poder experimentar diferentes abordagens de ensino com estudantes que enfrentavam desafios maiores. Lamentavelmente, essa boa ideia virou uma indústria poderosa, que compete com as escolas públicas para atrair estudantes e recursos públicos preciosos, afirmou em entrevista Dwight Holmes, pesquisador em educação e das escolas charter nos Estados Unidos, e analista sênior de políticas com foco em questões de equidade na educação para a Associação Nacional de Educação (NEA) [9].
Holmes ainda comenta que onde o poder político é mantido pelo Partido Republicano, as leis para as escolas charter são mais flexíveis, permitem maior liberdade tanto para a agência que autoriza sua criação quanto para as próprias instituições de ensino. Também é onde as escolas tiveram suas principais problemáticas transparecidas ao público.
Como o modelo havia sido pensado para professores administrarem tais entidades com foco em alunos com dificuldades, mas foi “sequestrado” por neoliberais com ideias de reformas do ensino e privatização do mesmo, a Aliança Nacional para Escolas Públicas Charter, um importante lobbypró-charter guiado por empresas privadas, publicou um “modelo de lei para a escola charter” [10], que descreve o mundo como eles gostariam que fosse.
O documento apresentado pela Aliança demanda que as escolas charter sejam isentas das leis e convenções estaduais coletivas, evitando que os professores possam se organizar em sindicatos, principalmente para evitar críticas e reclamações das condições deploráveis de trabalho dos professores, argumenta Dwight Holmes.
Os estados, por exemplo, não exigem que os professores das escolas charter tenham certificação correspondente para lecionar. Como menciona Holmes, “Os professores das escolas chartertendem a ser mais jovens, menos qualificados, com menos experiência, recebem menos, têm menos benefícios e volume de trabalho superior. Na Flórida, por exemplo, o salário médio anual dos professores nas escolas charter em 2011–2012 era de 38.459 dólares e nas escolas públicas tradicionais de 46.273 dólares” — quase 8 mil dólares de diferença.
Outro ponto é a perda da autonomia da cátedra, uma característica que garantiria a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento; que garante o pluralismo de ideias no ensino. No Brasil, essa garantia é prevista na Constituição, precisamente no artigo 206, e está na mira do projeto conhecido como “Escola Sem Partido”, projeto que recentemente foi alvo de críticas de peritos da ONU justamente por restringir tal liberdade (sendo classificado como Censura) [11].
Alguns especialistas, como Dave Hill, professor da University College Northampton, tecem críticas sobre um dos motivos da retirada da liberdade de cátedra e a introdução de um sistema de avaliação por testes, pois essa seria uma das formas de desconstruir o senso crítico do aluno e da comunidade, uma forma de evitar o pensamento autônomo (autonomia que antes era o objetivo das charters) para além do conhecimento restrito ao pedagógico, uma característica, segundo autor, bem clara da política neoliberal defendida por Friedman [12].
Qual foi o resultado prático das escolas charter?
Para debater sobre as reformas promovidas pelo modelo charter, antes de tudo, precisamos falar sobre Diane Ravitch. Diane é historiadora na área da educação, analista de políticas educacionais e professora pesquisadora na Escola Steinhardt de Cultura, Educação e Desenvolvimento Humanoda Universidade de Nova York, e foi uma das grandes defensoras do sistema reformista das charter schools até observar como se procedeu e quais foram os resultados de tal reforma.
Ravitch renunciou oficialmente seu apoio às charter em 2010, após lançar o livro “The Death and Life of the Great American School System: How Testing and Choice Undermine Education” (em tradução livre: A Morte e Vida do Grande Sistema de Educação Americano: Como Testes e Escolhas Prejudicam a Educação), em que a autora critica os usos punitivos da responsabilidade para desqualificar professores e fechar as escolas, bem como substituir as escolas públicas por escolas charter.
Seu livro tornou-se bestseller um mês após ser lançado, além da figura de Diane passar a ser uma das porta-vozes para denunciar um sistema que, segundo ela — com os testes de alto risco, os objetivos “utópicos”, as penas “draconianas”, o encerramento das escolas, a privatização e as escolas charter —, não funcionou [13]. Ela ainda segue em sua crítica apontando questões até mesmo ideológicas para tais reformas, pois o processo de reforma foi iniciado por bilionários e grupos de pensamento de direita como a Heritage Foundation, com a finalidade de destruir a educação pública e os sindicatos de professores [14].
O papel de destaque social de Diane ajudou a divulgar inúmeras avaliações destas escolas e mostrou seus desempenhos sociais, educacionais e culturais de tal forma que, como visto acima, em pouco tempo o tema se tornou absurdamente comentado, e acabou dando luz a números não tão maravilhosos como seus grupos financiadores tentavam demonstrar.
Bom, até aqui acreditamos que você pode ter percebido que esse tipo de Escolas Charter é uma espécie de terceirização do ensino entre governo e “organizações sociais”. Isso inclui responsabilizar estas organizações por alcançar certos níveis de desempenho nos exames de larga escala. Pressionadas para cumprir o contrato, tenham ou não condições, as organizações procuram formas de chegar lá e não perder o contrato. E é justamente aqui que mora o “perigo” desse sistema, pois estas situações de pressão criam as possibilidades de fraude, como se vê em Nova Orleans, além de outros problemas tão absurdos quanto.
Uma organização com características de “sistema de pirâmides”, a Landry-Walker (rede de charter), esteve no olho de outro furacão com suspeita de fraudes massivas nos testes [15]. Outro estudo, de 2015, intitulado “The Tip of the Iceberg: Charter School Vulnerabilities To Waste, Fraud, And Abuse” (em tradução livre: A Ponta do Icebergue: Escolas Charter e sua Vulnerabilidade ao Desperdício, Fraude e Abuso) realizado por The Center for Popular Democracy e Alliance to Reclaim Our Schools, detalha fraudes e desperdícios de 200 milhões de dólares dos contribuintes no setor das escolas charter estadunidenses [16]. O relatório demonstra que, ainda em 2014, as fraudes financeiras em 15 estados — cerca de 1/3 dos estados com escolas charter — apresentaram mais de 100 milhões só em desperdícios. O próprio governo comenta que, no entanto, este total na verdade é impossível de ser dimensionado e deve ser muito maior, pois não há fiscalização suficiente nestas escolas.
Outra situação é que cada vez mais circulam relatórios mostrando que não há evidência empírica a respeito da eficácia alardeada pelos reformadores empresariais da educação sobre a qualidade das escolas charter. Em 2013, tivemos o National Education Policy Center, que revisou o estudo do Center for Research on Education Outcomes (CREDO), da Universidade de Stanford, e mostra a ínfima diferença entre ensino nas escolas tradicionais públicas e nas charter [17].
Alguns estudos dos próprios defensores das charter (CREDO) mostram que em pesquisas comparativas entre escolas charter administradas por contrato de gestão e escolas públicas regulares, em 15 estados americanos, em apenas cinco as escolas charter são levemente superiores [18].
Outra característica é que esse tipo de escola conduz à formação de guetos de escolas destinadas à pobreza e estratifica, por escola, os alunos. As escolas charter terminam retirando os alunos mais motivados das escolas públicas, deixando a estas a tarefa de ensinar os alunos mais pobres e com notas mais baixas, promovendo assim uma segregação escolar que leva em conta dois fatores muito marcantes: Classe e Cor [19] [20]. Depois de duas décadas, a promessa de escolas charterbaseadas na “liberdade escolha” para promover a integração e a igualdade na educação estadunidense ainda fica por ser cumprida.
E o que se mostra ainda mais chocante nessa segregação de classe e cor? Foi que, apesar de os próprios reformadores, baseando-se em seus próprios relatórios, reconhecerem que sim, a segregação no modelo charter é uma realidade, eles preferiram justificá-la, afirmando que é um fator “benéfico” para a meritocracia estudantil [21] [22]. Justamente por isso, a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), a mais antiga organização de direitos civis dos negros nos EUA, ratificou uma resolução pedindo a suspensão da expansão de escolas charter e uma maior supervisão sobre as existentes em 2016 [23][24]. O próprio NYTimes, que há 25 anos era um dos maiores apoiadores da reforma terceirizada, além do sistema de Vouchers, em um editorial de Betsy Devos, reconheceu que nem de longe as escolas charter são soluções para os problemas de segregação da educação americana [25].
Considerações finais
No livro “A Educação para Além do Capital”[26], do filósofo húngaro István Mészáros, o autor disserta que a Educação jamais deveria ser um negócio dentro dos parâmetros capitalistas, que tem como base retirar o saber crítico das massas, o que de fato ocorre, inclusive comprovado com diversos estudos e casos, como a realidade das escolas charter.
Não há atalhos para a boa educação. É o que Richard Kahlenberg, da “The Century Foundation” mostra ao chamar a atenção para um estudo americano que acaba de ser divulgado: “School Improvement Grants: Implementation and Effectiveness” (em tradução livre: Subsídios de Melhorias Escolares: Implementação e Efetividade) [27]. Publicado em janeiro de 2017, o estudo avalia as reformas conduzidas pela administração Obama (incluindo o Race to the Top). A amostra para a avaliação incluiu 22 estados e aproximadamente 60 distritos e quase 500 escolas. O programa desenvolvido por Obama gastou bilhões de dólares e os resultados divulgados neste estudo mostram que ele foi um fracasso. Segundo Kahlenberg: “Quando a administração Obama chegou ao fim, lançou discretamente um estudo descobrindo que sua maior iniciativa na educação — um programa de 7 bilhões de dólares para melhorar drasticamente o desempenho das escolas em dificuldades — foi um fracasso. O investimento maciço do School Improvement Grant ‘não teve nenhum impacto significativo na matemática ou nas pontuações dos testes de leitura, nem na graduação do ensino médio, ou na matrícula em faculdade’, concluiu o estudo.”
Em Nova Orleans, por muito tempo a situação ficou afetada pela passagem do Katrina, principalmente em áreas onde os moradores são de classe mais baixa. O Distrito 9 (Lower 9th Ward) contou com sua primeira mercearia somente em 2015 [28]. Nos EUA, esse tipo de bairro é visto como deserto alimentício, um bairro sem supermercados. A saúde se ressente. A ausência de comida fresca nesse país é um dos indicadores mais confiáveis de pobreza, mas o mesmo bairro possui 2 escolas charter implantadas meses após o Katrina.
O Distrito 9 (além de outros bairros nessas condições na cidade) é a verdadeira cicatriz ainda aberta do furacão. Depois do Katrina, o Distrito 9 recuperou apenas 37% da população anterior, e destes, 98% são negros. Para cada casa construída, há quatro ou cinco espaços vazios. Foi também onde os números de segregação educacional nas escolas charter mais chocou.
O jornalista Colleen Kimmett, da revista In These Times, passou três meses em Nova Orleans para analisar a sociedade com o advento das charter na educação local 10 anos após o Katrina (2015) [29].
Os números iniciais pareciam promissores: A taxa de graduação aumentou de 56% para 73%. Mas, para estudar a reforma in loco, o jornalista também passou a debater com o NPE sobre os tais resultados das escolas. O NPE disponibilizou uma das pesquisas realizadas pelas pesquisadoras da Universidade do Arizona, Francesca López e Amy Olson. O estudo comparou escolas charter em Louisiana, a maioria das quais estão em Nova Orleans, com escolas públicas da Louisiana, considerando fatores como raça, etnia, situação socioeconômica e se alunos eram qualificados para educação especial. Nos testes de leitura e matemática da oitava série, os alunos das escolas charterapresentaram desempenho pior do que seus homólogos de escolas públicas, e por margens enormes — 2 a 3 desvios-padrão.
Os pesquisadores descobriram que o fosso entre as charter e o desempenho da escola pública na Louisiana era o maior de qualquer estado do país e as pontuações gerais da Louisiana foram a quarta menor da nação.
Como menciona Kimmet, o desempenho baixíssimo escolar é apenas um detalhe das escolas, e, por meio de debates com professores, pais, alunos e membros da comunidade, todos acabaram reprovando o modelo. A matéria da In These Times abalou o país, mas não mostrou nada que não tivesse sido vivenciado em outras charter pelos EUA.
“É assustador, um modelo que anda de mãos dadas com as privatizações por meio da terceirização da educação pública”, declarou o ator Matt Damon, que narrou o documentário “Backpack Full of Cash” [30] (“Mochila cheia de dinheiro”), em que investiga a crescente privatização de escolas públicas e o impacto resultante desta sobre as crianças mais vulneráveis da América.
O nome faz referência tanto ao dinheiro que as corporações ganham atuando como agentes da educação pública, às custa de recursos públicos, como também ao programa de “vouchers” em que os governos dão o dinheiro para os pais escolherem em qual escola matricular seus filhos.
Ficam duas questões em aberto no caso das charter:
Primeira: Quando os reformadores (neoliberais) assumirão a responsabilidade pela fracasso do sistema de educação que eles implantaram? Depois de mais de duas décadas de reforma impulsionada por testes, dados, pressão sobre as escolas, privatização por meio de charter e vouchers, quando é que os reformadores irão admitir que os dados os contradizem e que eles falharam em suas promessas?
A resposta para esta questão, e possivelmente a mais fácil deste debate: Já começaram. Envergonhados e ainda tentando se esquivar da culpa, mas já começaram.
Greg Foster, da Fundação Friedman [31], agora admite que o programa de vouchers de Louisiana fracassou. Desmoronou ao ficar sujeito ao mesmo sistema de accountability baseado em testes que eles próprios e os reformadores neoliberais ajudaram a impor para as escolas públicas tradicionais. Afirma que “Louisiana (seu programa de vouchers) é agora o primeiro programa de escolha de escola que se mostrou, pela pesquisa empírica, produtor dos piores resultados acadêmicos”. Greg acaba por ser tímido em sua crítica e, mesmo com o passo da ausência de regulação do Estado, tenta distribuir a “culpa” para setores do Estado e pouco para os reformistas.
Ainda vale lembrar que o próprio NYTimes, um dos meios de mídia que mais influenciaram na reforma educacional — inclusive onde Friedman publicou seu lendário artigo sobre reformar por completo a educação de Nova Orleans após o Katrina —, precisou assumir certos “detalhes negativos” das reformas aplicadas como Vouchers e charter [32].
A segunda questão é: Mesmo com desempenhos fracos, corrupção e segregações sociais evidentes, por que reformistas agora buscam implementar o mesmo sistema em outro países, como é o caso do próprio Brasil?
Só gostaria de lembrar que esse tipo de reforma aplicada pelo poder econômico já está em passos largos em diversos estados do Brasil.
A Secretaria de Estado da Educação de Goiás, em 2016, promoveu uma reunião com 22 Organizações Sociais interessadas na terceirização das escolas, para que elas participem da implantação do modelo das escolas charter a partir de agosto (de 2016), inclusive contando com o apoio do Banco Mundial para assessorá-las [33].
A realidade norte-americana poderá ser a nossa a partir destas reformas? Qual o interesse de megaempresários na privatização do ensino por meio de terceirização? Diante do desastre que esse modelo significou para a educação no próprio país em que foi elaborado e que é a maior economia do mundo, sendo inclusive comprovado por diversos estudos, não resta dúvida que o avanço desse modelo na educação brasileira não resolverá seus problemas. Isto se não aprofundá-los.
Referências
[1] USNews – Hurricane Katrina.
[2] http://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2015/08/7-fatos-que-voce-precisa-saber-sobre-o-furacao-katrina.html
[3] KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vania Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
[4] FRIEDMAN, Milton. The Promise of Vouchers. Wall Street Journal, 2005. https://miltonfriedman.hoover.org/objects/56959/the-promise-of-vouchers
[5] http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/01/29/AR2010012903259.html
[6] https://greatlakescenter.org/docs/Policy_Briefs/Mathis_ContractingOut.pdf
[7] https://www2.ed.gov/parents/schools/find/choose/index.html
[8] https://www.edreform.com/wp-content/uploads/2015/03/CER-CharterLawsChart20151.pdf
[9] http://www.cartaeducacao.com.br/entrevistas/charter-school-uma-escola-publica-que-caminha-e-fala-como-escola-privada/
[10] http://www.publiccharters.org/wp-content/uploads/2016/01/Model-Law-Final_2016.pdf
[11] http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,relatores-da-onu-denunciam-escola-sem-partido-e-classificam-projeto-de-censura,70001737530
[12] http://www.curriculosemfronteiras.org/vol3iss2articles/hill.pdf
[13]
[14] http://www.wnyc.org/story/62691-state-education/
[15] http://www.nola.com/education/index.ssf/2016/02/landry-walker_cheating_investi.html#comments
[16] http://populardemocracy.org/sites/default/files/Charter-Schools-National-Report_rev2.pdf
[17] http://nepc.colorado.edu/newsletter/2013/07/review-credo-2013
[18] http://credo.stanford.edu/reports/MULTIPLE_CHOICE_CREDO.pdf
[19] http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/selecao-de-melhores-em-escolas-deixa-alunos-para-tras/n1597108071443.html
[20] http://epaa.asu.edu/ojs/article/view/779
[21] Relatório dos reformadores: https://www.aei.org/wp-content/uploads/2017/02/Differences-by-Design.pdf
[22] Revisão feita pelo NEPC – http://nepc.colorado.edu/thinktank/review-charters
[23] https://www.washingtonpost.com/news/answer-sheet/wp/2016/10/15/naacp-ratifies-controversial-resolution-for-a-moratorium-on-charter-schools/?utm_term=.69e71f564a34
[24] http://www.naacp.org/latest/statement-regarding-naacps-resolution-moratorium-charter-schools/
[25] https://www.nytimes.com/2017/01/10/opinion/big-worries-about-betsy-devos.html?smprod=nytcore-iphone&smid=nytcore-iphone-share
[26] MÉZÁROS, István. A educação par além do capital. 2ed – São Paulo: Boitempo, 2008.
[27] https://ies.ed.gov/ncee/pubs/20174013/pdf/20174013.pdf
[28] https://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/26/internacional/1440607212_419934.html
[29]http://inthesetimes.com/article/18352/10-years-after-katrina-new-orleans-all-charter-district-has-proven-a-failur
[30] https://ksr-video.imgix.net/projects/2565124/video-716307-h264_high.mp4
[31] http://www.ocpathink.org/article/let-families-grade-schools
[32] https://www.nytimes.com/2017/02/23/upshot/dismal-results-from-vouchers-surprise-researchers-as-devos-era-begins.html?smprod=nytcore-iphone&smid=nytcore-iphone-share&_r=1
[33] http://portal.seduc.go.gov.br/SitePages/Noticia.aspx?idNoticia=2006
Para saber mais
• The New Orleans Tribune — “Other” Bill To Return Schools Is: Just A Ploy To Maintain The Status Quo
• USNews — The Real Heroes
• Blog do Freitas — USA: escolas em luta
https://voyager1.net/mundo/privatizacao-do-ensino-o-caso-dos-charters-nos-eua/