A pedagogia revolucionária
A pedagogia revolucionária de Rubem Alves
Em julho de 2014 foi recebida a triste notícia da morte do escritor e educador Rubem Alves, responsável por influenciar centenas de professores em todo o Brasil
Por Julia Garcia* | Adaptação web Caroline Svitras
Se hoje falamos tanto em inovar a educação e buscar soluções para variados problemas percebidos em sala de aula, é certamente devido à difícil relação que temos com nossa história. Diferente de muitos outros países, no Brasil saltou-se do emprego de antigas teorias, hoje postas em desuso – como punição corporal para alunos indisciplinados e repetição incessante de conceitos –, passando pela faceta mais estrita causada pelo Regime Militar para que, finalmente, nossos conceitos de educação pudessem ser revistos no ritmo frenético causado pelas constantes mudanças tecnológicas, culturais e sociais. De repente, os professores brasileiros viram-se confrontados não só com a necessidade de rever o sistema educacional em que estavam inseridos, mas também com encarar como problemas coisas que, até então, não eram assim percebidas – como a falta de envolvimento dos alunos com a sala de aula e a recém-descoberta necessidade de mantê-los interessados e ativos, estimulando o aprendizado.
No entanto é necessário admitir que, nesse campo, sempre tivemos sorte: jamais faltou em solo brasileiro educadores comprometidos em abraçar o desafio de reinventar-se para melhor ensinar. E, dentre tantos nomes que podemos destacar, damos nesta oportunidade maior atenção a um de nossos maiores nomes, o doutor Rubem Alves.
Desperte o interesse dos alunos
Nascido no ano de 1933 em Minas Gerais, o início de sua carreira não indicava que um dia seria um nome tão importante na educação brasileira: de inclinação religiosa, vivia como pastor e começou seus estudos em Teologia no Seminário Presbiteriano de Campinas. A vida eclesiástica no Brasil teve uma importante interrupção em 1963, quando mudou-se para Nova York para concluir seu mestrado em Teologia. Seu retorno ao país coincidiu com o início da Ditadura Militar – levando-o novamente aos Estados Unidos. O motivo? Suas ideias eram consideradas subversivas e, portanto, perigosas; na época, mudar-se para outro país foi a saída de muitos pensadores e artistas, devido à perseguição praticada contra todos que sugerissem mais mudanças e liberdades do que o governo julgasse necessárias. Sobre o exílio, Rubem Alves relatou: “Não me esqueço nunca do momento preciso quando o avião decolou. Respirei fundo e sorri, descontraído, na deliciosa euforia da liberdade. Ainda hoje, quando um avião decola, sinto de novo aquele momento”. Entre seus atos de rebeldia ideológica, cita suas crenças sobre a utilidade da religião – que serviria para tornar os humanos melhores na vida, e não na morte – e sua abordagem do ensino – que não podia ser tratado como uma operação matemática em que se adiciona apenas verba para, então, ter-se como resultados alunos interessados. O que hoje é aceito com naturalidade em faculdades de licenciatura por todo o país foi proposto por Rubem Alves a uma sociedade que via (e, em muitos aspectos, ainda vê) o ensino com olhos muito diferentes.
Professor de espantos
Uma solução improvável para o desinteresse infantil e adolescente pelo aprendizado: renovar não a tecnologia e os métodos, mas os próprios professores. É esse tipo de ideia, à primeira vista chocante, que destacou Rubem Alves como pensador e pedagogo: a de que o conceito de disciplina, o professor que grita “Silêncio!” e “Fiquem quietos!”, nasce de uma visão equivocada do papel do educador, em que este se coloca à frente da classe para falar e escrever no quadro conceitos imutáveis, indiscutíveis, sem parecer ter qualquer ligação com seus alunos, que não veem como tirar proveito prático dos conteúdos.
No seu ponto de vista, a função do professor é perguntar-se: “Isso que eu vou ensinar serve para quê?”. E, dependendo da resposta, é até mesmo recusar-se a repetir o que consta no programa e buscar algo que tenha relação com a vida do aluno; afinal, se é através da educação que formamos cidadãos, tal educação precisa ter paralelos e encontros com as vivências dos alunos. Parece óbvio, mas nem sempre ocorre. Em vista de possíveis (e talvez justas) críticas sobre o romantismo do pensamento de Alves, que, assim exposto, parece ignorar questões mais complexas – como falta de recursos nas escolas, a desvalorização dos professores e a própria formulação dos cursos de licenciatura –, o pedagogo justifica sua visão com uma observação compartilhada por muitos colegas: os livros didáticos, hoje, têm como objetivo final fazer o aluno passar no vestibular com um conhecimento que não serve para prepará-lo para dificuldades da vida, das financeiras às éticas e políticas. Independente dos muitos outros problemas enfrentados por educadores e alunos, que precisam de diversas soluções, a crítica de Alves toca o cerne da educação e do professor: para que serve? De que valemos? Todo nosso papel está resumido a uma vaga na universidade?
Nisso, é valiosa a definição que o educador faz de aprendizado: “É aquilo que fica depois que o esquecimento faz o seu trabalho”. A função do educador, assim, está em construir com o aluno – em conjunto, não apenas passando nomenclaturas que devem ser memorizadas – ideias e conceitos que farão parte da vida do educando. Mais do que isso: que tornarão o aluno um cidadão capaz de utilizar aquilo que foi aprendido para transformar sua existência e o mundo à sua volta.
Em uma era em que professores disputam espaço com smartphones e tablets, mesmo quando proibidos em sala de aula, e com o acesso à informação plenamente desimpedido, a proposta de Rubem Alves, citada no início dessa seção, é tão útil quanto revolucionária. Se as respostas que devem ser decoradas para vestibulares estão nos livros, não é necessário que o professor vá para a frente da sala repeti-las: deve, então, estimular a curiosidade, instigar a pergunta – nas palavras do próprio, provocar espantos. Não é nosso papel brigar com o som de uma mensagem no Whatsapp ou uma atualização no Instagram em plena aula, mas sim trazer aos alunos tudo que for desconhecido e interessante, de modo que tudo que não for a matéria estudada perca o sabor em comparação. Para sustentar suas palavras, Alves dá dois exemplos singelos: o primeiro trata de sua infância, quando uma professora simplesmente lia Monteiro Lobato para os alunos, que, fascinados, não emitiam qualquer som nem faltavam às aulas, ávidos por mais; o segundo é o momento em que uma menina de 7 anos, filha de sua então empregada, vê suas ferramentas – serra, trena, martelo – e, intrigada, começa uma série de perguntas que culmina, por iniciativa própria da criança, no aprendizado do sistema decimal, usado para medir e, entre outras coisas, permitir a construção de móveis. Os alunos são seres naturalmente curiosos, mas uma educação baseada em dar a eles questões para responderem não estimula essa inclinação tão característica da infância e da adolescência para criar suas próprias perguntas.
Para gostar de ler
A ideia de ensinar a pensar e não a decorar respostas dialoga com outro problema observado por professores em todo o Brasil, principalmente os de Português e Literatura: a falta de leitura. Muito se fala sobre como tornar o hábito de ler mais atraente para crianças e adolescentes e a visão mais comumente adotada, ainda que possa diferir em alguns pontos entre variados professores, é a de que meramente forçar o aluno a ler não funciona. Para Rubem Alves, a questão vai mais além: antes de se pensar em fazer com que os alunos leiam, é mais importante tornar a relação com a leitura uma de amor, de gosto. Falar condescendentemente na importância da leitura com crianças não surte efeito – mas criar o hábito através da apreciação é infalível. Pode-se definir a ideia de Alves como um apelo à simplicidade. Em uma entrevista para a série de vídeos A Escola Ideal, disponível no YouTube, o educador sugere atitudes cotidianas, como ler para uma criança, contar histórias, e até mesmo ser visto com a cara num livro, de modo a tornar a atitude alvo da curiosidade – esse ingrediente tão importante e tão esquecido na educação dos jovens – do educando e o exemplo imitável e acessível.
Não é, em absoluto, sem conhecimento de causa; embora cite em suas memórias Monteiro Lobato como o tipo de autor capaz de provocar esse encanto nas crianças, Alves podia trazer como exemplo a própria bibliografia. Muito conhecido pelos professores por seus livros de filosofia, integrantes de currículos em diversas faculdades em todo o Brasil, o autor buscou colaborar com o incentivo à leitura de forma mais prática: com mais de uma dúzia de histórias para crianças publicadas, algumas inclusive em parceria com Maurício de Sousa, nome notável da literatura infantojuvenil, mostrou que para encantar mentes infantis basta escrever contos que estimulem o pensar, o criar, o brincar. Títulos como O Patinho Que Não Aprendeu a Voar trazem assuntos complexos – este, por exemplo, trata do conceito de liberdade e do medo – com personagens simples, similares às próprias crianças, com paralelos que não subestimam a compreensão infantil e incentivam a fantasia e a imaginação.
Sua obra voltada para o público infantil é tão relevante por ser uma aplicação prática de suas ideias; não é possível, no entanto, ignorar o impacto do resto de sua bibliografia, onde eternizou suas propostas pedagógicas e seus pensamentos sobre a vida em geral. Deixados por uma mente tão ativa e revolucionária, preocupada com a relação da filosofia com a vida – ou, melhor dizendo, com a utilidade que pensamentos podem ter na transformação do mundo –, todos os escritos de Rubem Alves servem ao educador que quiser dar à sua prática um viés libertário e enriquecedor. Seja ao falar de teologia e filosofia da religião, seja em suas crônicas sobre assuntos diversos, seja nos clássicos A alegria de ensinar, Por uma educação romântica ou A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, o autor cumpre o objetivo que atribui a um verdadeiro educador: ensinar a pensar.
Carpe diem
A literatura tem uma importante semelhança com a educação: a imortalidade. Uma vez escrito e lido com atenção, um livro jamais deixa de existir e, dessa forma, seu autor se mantém vivo, presente, não importa quantos centenários se contem a partir de sua morte; da mesma forma, tudo que foi realmente aprendido jamais se esvai por completo. Algo sempre sobrevive à varrida que o tempo faz em nossas mentes. Rubem Alves destacou-se tanto na literatura como na educação por entender o que ambos tinham em comum e como podem ser usados conjuntamente para chegar ao objetivo final do ensino: não um diploma ou um currículo cheio de itens enfileirados, mas a formação de seres humanos pensantes, reflexivos, capazes de atuar no mundo, criticá-lo e construí-lo. Assim, não é exagero dizer que o legado de Rubem Alves é imortal, passem-se poucos meses ou muitas décadas. Se seu lema era carpe diem, ou “aproveite o dia”, sem dúvida ele o fez, e seu legado nos mostra – ou, talvez mais apropriado colocar, nos ensina – que uma educação plena e libertária é possível.
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Fotos: Conhecimento Prático – Literatura Ed. 57
*Julia Garcia é professora de inglês no Rio Grande do Sul, tradutora e revisora de textos.
http://literatura.uol.com.br/a-pedagogia-revolucionaria-de-rubem-alves/