A dívida é uma máscara
“A dívida é uma máscara para impedir o nosso desenvolvimento”
Baseada em fraudes e ilegalidades, dívida pública consumiu 42% do Orçamento em 2015
Reportagem: Pedro Muxfeldt
Somente no ano passado, o governo federal investiu R$ 88,6 bilhões em educação e R$ 93,8 bi em saúde. A Previdência Social representou um gasto bem maior: R$ 514,5 bilhões. Mas nenhum destes valores se aproxima do maior — e menos falado — gasto do Estado brasileiro: o pagamento de juros e amortização da dívida pública, que em 2015 mordeu R$ 962 bilhões do Orçamento. O valor equivale a 42,43% das despesas da União.
Como comparação, os investimentos em Saúde representaram 4,14% do bolo do Orçamento, a rubrica Ciência e Tecnologia ocupou apenas 0,27% e a Cultura teve direito a apenas 0,04% de todos os gastos federais. Apesar dos valores pequenos, os dois últimos setores foram alvo de fusões com outras pastas — a união da Cultura com o Ministério da Educação seria depois revertida — pelo governo interino de Michel Temer para reduzir despesas em meio à crise econômica. Quanto aos gastos com a dívida pública, nenhuma ação foi sequer ventilada.
O fato, aliás, não é uma exclusividade da presidência do peemedebista. Desde a década de 1980, os juros da dívida são a maior fatia do Orçamento e nenhum governo especulou revisar a origem e a regularidade desse gasto, que sempre oscilou entre 40% e 50% de todas as despesas da União. É o que defende a Auditoria Cidadã da Dívida, associação sem fins lucrativos que desde 2000 estuda e investiga a dívida, tanto do governo federal quanto dos estados e municípios. Em 16 anos de trabalho, a conclusão do grupo é simples: a maior parte da dívida pública é fruto de fraudes, ilegalidades, ações vedadas pela Constituição e, portanto, deveria ser cancelada.
A explicação é uma longa história que remonta à origem do débito, explica a coordenadora nacional da ACD desde a sua fundação, Maria Lucia Fattorelli, que concedeu entrevista exclusiva àApuro. “A dívida, que na época era externa, surge na década de 1970 e em dez anos passa de US$ 5 milhões para US$ 80 milhões. Só que era uma dívida do setor privado, bancos e multinacionais instaladas no Brasil. Com a crise dos anos 1980, o FMI entra no país e o contrato de socorro prevê que a dívida ficasse a cargo do Banco Central. Ou seja, a dívida que era privada se tornou pública. E isso aconteceu em vários países da América Latina ao mesmo tempo. Os contratos do Brasil, Argentina, Equador são idênticos”, diz ela.
A primeira leva de acordos com o Fundo Monetário Internacional ocorreu entre 1982 e 1984. Desde então, o estoque da dívida e os gastos anuais com ela só aumentam. Eles poderiam, contudo, ter sido encerrados ainda nos anos 1990. No Equador, que auditou sua dívida há nove anos, os contratos com o FMI foram tornados públicos e descobriu-se que os acertos iniciais previam que a dívida iria prescrever em 1992, mas o governo equatoriano na época rejeitou que ela fosse cancelada. “É uma situação absurda que suspeitamos ter acontecido no Brasil também. Logo depois disso, a dívida foi transformada em papéis em 1994 na bolsa de Luxemburgo. O local foi escolhido por ser um paraíso fiscal, que aceita tudo. Nenhuma bolsa regular aceitaria fazer essa negociação. Esses papéis eram títulos podres resultado da dívida prescrita. E foram esses títulos os utilizados para comprar as empresas públicas do nosso país durante as privatizações, a partir de 1996”, aponta Fattorelli.
Uma auditoria profunda, com abertura de informações hoje consideradas sigilosas pelo governo, provaria todas essas hipóteses da ACD e revelaria novas ilegalidades, garante a ex-auditora do Ministério da Fazenda.
“A auditoria pretende provar tudo isso e revelar como a dívida é uma máscara para impedir o desenvolvimento socioeconômico do Brasil. A vida nesse país era para estar em outro patamar. Era para termos escolas deslumbrantes para todos, era para sermos superdesenvolvidos em ciência e tecnologia, era para termos hospitais de ponta com medicina preventiva. Era para estarmos num outro patamar de justiça e dignidade. E como vive o povo? Quase um quarto da população com menos de um salário mínimo, 11 milhões de desempregados, falta de saneamento básico, moradia digna, sem acesso à educação”, afirma.
Num cenário ideal, a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) não existiria. Em 2000, uma grande iniciativa da sociedade civil, que reuniu a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e diversas centrais sindicais, organizou um plebiscito popular pela auditoria da dívida pública. Em tempos “sem WhatsApp, Facebook e com mobilização em porta de fábrica”, como salienta Maria Lucia Fattorelli, mais de 6 milhões de votos foram recolhidos. A vontade popular de uma revisão do débito foi levado ao Poder Executivo, Congresso Nacional e STF. As autoridades, porém, ignoraram os resultados e nada fizeram. “Foi feita uma grande reunião em Brasília e decidimos criar a Auditoria Cidadã da Dívida para manter o tema do endividamento público em debate e exigir uma auditoria da dívida pública”, conta Fattorelli.
Ao longo dos últimos 16 anos, o grupo estuda os impactos sociais da dívida e, principalmente, busca expandir o conhecimento da população sobre a dívida e suas controvérsias. Até hoje, a principal conquista da ACD foi a realização da CPI da Dívida na Câmara dos Deputados, entre 2009 e 2010. Apesar de ter levantado de informações revelantes, o relatório final da comissão, de autoria do deputado Pedro Novais (PMDB-MA), não recomendou a realização de auditoria já que esta seria uma prerrogativa do Tribunal de Contas da União.
Em resposta, um grupo de deputados, capitaneado por Ivan Valente (Psol-SP), proponente da CPI, elaborou relatório alternativo que incorporava entre suas conclusões os dados concedidos pela assessoria técnica prestada por Maria Lucia Fattorelli e outros membros da Auditoria Cidadã da Dívida. O documento foi entregue ao sub-procurador da República, Eugênio Aragão, nomeado ministro da Justiça por Dilma Rousseff pouco antes da abertura do processo de impeachment. O Ministério Público se comprometeu a investigar as irregularidades apontadas no relatório.
“O MP não fez nada com os resultados que entregamos. A sociedade civil não estava consciente do drama da dívida e não houve apoio para a pauta. O Executivo também não teve vontade política para realizar a auditoria e nossa dívida continua se multiplicando”, diz Maria Lucia.
Avontade política que faltou ao governo Lula — e a todos os presidentes do país antes e depois dele — sobrou para o presidente Rafael Correa, do Equador. Em 2007, pouco depois de chegar ao poder, ele determinou a realização da auditoria da dívida. A comissão nomeada por Correa recebeu plenos poderes para requerer documentos junto aos órgãos públicos e realizar investigações. O grupo era integrado por representantes do governo, cidadãos equatorianos e seis especialistas internacionais, entre eles a brasileira Maria Lucia Fattorelli.
Os trabalhos duraram 14 meses. Ao final das pesquisas, a equipe entregou relatório ao mandatário equatoriano apontando uma série de fraudes e ilegalidades que davam subsídio ao governo equatoriano para cancelar todo o estoque da dívida. Os pagamentos foram imediatamente suspensos e todo o montante redirecionado para investimentos em saúde e educação. Pela primeira vez na história recente da América Latina, um país apresentava gastos sociais superiores aos com os juros da dívida.
Com os resultados em mãos e avalizados por uma equipe de juristas, Correa estabeleceu um prazo para que os credores dos papéis equatorianos resgatassem seus títulos por 30% do valor de face. Quem não aceitasse a negociação, deveria recorrer à Justiça para confrontar o documento da auditoria. Cerca de 95% dos detentores de títulos acataram o acordo e o Equador conseguiu anular 70% da sua dívida.
A ação corajosa de seu presidente rendeu frutos já colhidos no Equador. “Basta olhar os dados do país na Cepal para ver os avanços. O Equador erradicou o analfabetismo, recriou seu sistema de saúde, investiu na população. Apesar de todo o boicote internacional que reduziu o preço do petróleo — o que está afetando muito o país — , o desenvolvimento socioeconômico do Equador deixa o Brasil para trás. Lá, houve vontade política do presidente. Essa é a grande diferença”, diz Fattorelli.
A falta da mesma vontade no Brasil — e especialmente dos governos do Partido dos Trabalhadores — são uma decepção para a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida.
“Apesar do programa do PT em 2002 prever a auditoria da dívida, logo no início do governo Lula vimos uma grande mudança de orientação. A pressa que o Temer teve em editar medidas provisórias queríamos que o Lula tivesse para criar auditoria da dívida, rever privatizações. Mas quem o Lula indicou para o Banco Central foi o mesmo Henrique Meirelles que hoje é ministro da Fazenda. Na área econômica, o governo do PT não mudou nada, pelo contrário, aprofundou o lucro dos bancos. Para completar, conseguimos incluir a auditoria no plano plurianual do Congresso no ano passado e a Dilma vetou. Nesse aspecto há uma grande diferença entre os governos do PT e de Rafael Correa”, afirma ela.
Se o sentimento com os governos Lula e Dilma é de decepção, o prognóstico com Michel Temer é ainda pior, avalia Fattorelli. Para ela, propostas contidas no programa Ponte para o Futuro e já tiradas do papel em ações como a PEC 241 terão um efeito devastador sobre a qualidade de vida e desenvolvimento social do país. “Colocar na Constituição o congelamento dos gastos por 20 anos é condenar o país a mais 20 anos de problemas em saúde e educação. Isso vai representar um retrocesso brutal, é um escândalo porque não há justificativa para isso. Teríamos que estar fazendo o contrário, questionando os gastos com a dívida e estamos questionando gasto com saúde, educação, segurança e Previdência”, aponta a especialista.
Emtodo momento de crise econômica como o que o Brasil vive atualmente, o governo de ocasião adota discurso de austeridade e aponta a necessidade de corte de gastos. Hoje, a situação não é diferente. O ajuste fiscal de Dilma endureceu as regras de acesso a benefícios da Previdência, aprovou redução temporária de salários e jornada de trabalho e fez uma pequena reforma ministerial. Ainda interino, Temer pretende ir ainda mais longe fazendo reforma da Previdência, impedindo a realização de concursos públicos e limitando os investimentos do governo à inflação por meio da já citada PEC 241. A tesoura, contudo, não chega perto da dívida. E Maria Lucia Fattorelli explica o motivo.
“A dívida pública é a justificativa do PL 257, da PEC 241, da reforma da Previdência, das privatizações e das concessões. Se a gente acabar com essa dívida, qual vai ser a desculpa para o desmonte do Estado e a falta de investimentos? Não vai ter. Só com a dívida é que se compra as nossas empresas a preços baixíssimos. A dívida atende aos grandes interesses internacionais e seus cúmplices nacionais. O objetivo é fazer a dívida explodir para ter mais justificativas para desmontar o Estado e ficar mais fácil roubar nossas matérias-primas. O nome é esse: estamos sendo roubados”.
Apontar os beneficiários diretos da dívida, no entanto, não é uma tarefa fácil. O Banco Central trata como informação confidencial os nomes dos credores da dívida e apenas divulga anualmente a lista de 12 bancos — as principais instituições nacionais e internacionais — que estão aptos a negociar os títulos da dívida. A situação é classificada de inconstitucional por Fattorelli. “A Constituição garante o princípio da publicidade, mas ele é ignorado apesar da dívida ser pública e paga por todo o brasileiro. É uma aberração. Os dados tinham que estar postos em outdoor, dando satisfação ao povo que paga, mas é tudo escondido, mascarado”, diz ela.
A disputa contra os interesses de bancos, grandes empresas e da mídia tradicional também enfrenta um último ardil da dívida que, na visão da ex-auditora, é em parte responsável pelo baixo engajamento da população contra o pagamento dos juros. “O capitalismo financeiro foi muito esperto em escolher a dívida como mecanismo do roubo. Todo mundo respeita a palavra dívida, é algo muito caro para qualquer um. Uma dívida tem que ser paga. As pessoas fazem esse paralelo com a dívida pública. Só que não tem nada a ver uma coisa com a outra. A dívida pública é um grande esquema para os bancos, que não produzem riqueza nenhuma, se tornarem donos de países como o Brasil”, conclui Maria Lucia Fattorelli.