A cor púrpura
‘A cor púrpura’, de Alice Walker é uma linda e apaixonante história
“Querido Deus, Ele me bateu hoje porque disse queu pisquei prum rapaz na igreja. Eu pudia tá com uma coisa no olho, mas eu num pisquei. Eu num olho pros homem. Essa é que é a verdade. Eu olho pras mulher, sim, porque num tenho medo delas. Talvez porque minha mãe me botou maldição o senhor acha queu fiquei com raiva dela. Mas não. Eu sentia pena da mamãe”. Esse trecho faz parte do livro A cor púrpura, escrito por Alice Walker em 1983 e reeditado neste ano pela José Olympio. O livro, que foi adaptado para o cinema em 1985 e dirigido por Steven Spielberg, conta a história de Celie, que escreve cartas para Deus e, mais tarde, para sua irmã, para contar sobre a sua vida.
O livro de Alice Walker é um dos mais conhecidos da literatura norte-americana recente, tendo ganhado o prêmio Pulitzer quando foi publicado no país. Sua protagonista Celie conquistou uma legião de fãs e é fácil entender o porquê. A história se passa no período entre os anos 1900 e 1940. Celie é uma mulher negra, semianalfabeta, que mora no sul dos Estados Unidos. Desde sua infância, ela é estuprada pelo padrasto e depois forçada a se casar com Albert, um viúvo violento que bate nela cotidianamente e a trata como uma pessoa inferior que está ali para fazer suas vontades e cuidar dos serviços da casa e de seus filhos. Na narrativa, Celie chama o marido de Sinhô _ o que evidencia a natureza da relação dos dois que não é de amor e de parceria, mas sim de poder e opressão.
Este livro é estruturado de forma epistolar, ou seja, durante toda a obra os acontecimentos são mostrados nas cartas escritas por Celie e depois por sua irmã Nettie. Mesmo que o leitor não se sinta atraído pela leitura de cartas ou não tenha tido boas experiências com livros epistolares, deveria dar uma chance para esse livro. A cor púrpura apresenta personagens cativantes inseridos em um enredo comovente e dramático. Embora existam momentos extremamente dolorosos, trata-se de um livro que provoca dor, mas também consegue arrancar sorrisos.
É muito fácil sentir empatia por vários personagens e as cartas não são entediantes, burocráticas ou sequer formais. A forma com que Celie escreve sobre si mesma e sua vida é delicada e natural. Alice Walker expõe a lacuna deixada pela falta de educação formal por meio de erros, principalmente de ortografia, cometidos por Celie ao escrever. Como fazem parte do contexto proposto pela história, as inadequações não devem incomodar, mas aproximar o público de Celie.
Ainda na própria estrutura, o livro não aposta na alternância de interlocutores a cada carta ou quase isso. Pelo contrário: durante a parte inicial, Celie dirige suas cartas a Deus de maneira contínua e somente depois há uma troca de cartas com a irmã Nettie, que também não é cansativa. Essa escolha da autora é atraente; as cartas não se sobressaem ao conteúdo e fica a sensação de que é Celie que nos conta sua história.
Na primeira parte de A cor púrpura, as cartas que Celie direciona a Deus mostram desde os maus-tratos que ela sofria na infância até a vida adulta, desta vez como uma mulher casada com um homem autoritário e violento. Com todo esse histórico, a autoimagem de Celie é bastante abalada e distorcida e ela se vê como uma mulher descartável e não enxerga a própria resiliência. A chegada de Shug Avery, uma cantora ousada e sensual que tem um caso com seu marido, irá provocar uma reviravolta em Celie e despertá-la para novas possibilidades.
Celie se sente fascinada por Shug Avery antes mesmo de conhecê-la e, quando as duas se aproximam, a personalidade de Shug, sua espontaneidade e recusa em seguir papéis pré-definidos para as mulheres abrem os olhos de Celie para a opressão a que ela está submetida. Outra personagem que cumpre esse papel na vida de Celie é Sofia, que se casa com Harpo, filho de Sinhô. Sofia é uma mulher destemida que se recusa a obedecer Harpo, o que gera vários problemas entre o casal.Já Celie e Shug Avery constroem uma amizade muito singela e bonita, o que ajuda Celie a lidar até mesmo com sua sexualidade. Aos poucos, a personagem traça um percurso de (des)construção e acompanhá-lo é encantador.
Em determinado momento da história, Celie começa a trocar cartas com sua irmã mais nova Nettie. Celie acreditava que a irmã havia morrido, mas depois descobre que Nettie tornou-se uma missionária e vive na África. Além de aproximarem as duas irmãs, as cartas de Nettie são bem escritas e deixam clara a diferença do grau de instrução entre as duas. Enquanto Celie é semianalfabeta, Nettie teve a chance de aprender a ler e escrever corretamente.
O título da obra não é acidental e a cor púrpura surge em contextos variados durante a história. Percebe-se como a presença da palavra/cor púrpura é uma alegoria de todo o processo de autoconhecimento e de (des)construção por que passa Celie. A cor púrpura apresenta uma história sobre racismo, subserviência e violência contra as mulheres e até hoje essas questões permanecem atuais e urgentes.
Ficha técnica
Título: A cor púrpura
Autora: Alice Walker
Editora: José Olympio
Tradução: Betúlia Machado, Maria José Silveira e Peg Bodelson
Ano: 2016
Especificações: Brochura, 336 páginas
https://www.blahcultural.com/resenha-de-livro-cor-purpura-de-alice-walker/