20 de setembro
20 de setembro: nem belas façanhas nem modelo a toda a terra
Jacques Távora Alfonsin
O interesse de se conhecer as causas e os efeitos de alguns acontecimentos do passado é sempre motivado pela conveniência de seus protagonistas serem lembrados como exemplo a ser seguido ou rejeitado pelas gerações do presente e do futuro, conforme o juízo de quem conta a sua história. A verdade pode ser então provada, mas também pode ser vítima de algum desvio consciente ou inconsciente. O dia 20 de setembro é feriado no Rio Grande do Sul e os motivos para isso até hoje ainda servem de assunto para muita conjetura e debate, ora de louvação, ora de crítica acerba.
Conforme alguns relatos, o povo deste Estado celebra o 20 de setembro como a data da tomada de Porto Alegre, em 1835, por forças contrárias ao império naquela época governando o Brasil. De inspiração liberal, o levante teria sido motivado também pela carga tributária abusiva, cobrada pelo Império sobre a venda do charque e do couro, base da economia da então chamada província de São Pedro. Festas em muitas cidades, desfiles de carros alegóricos e cavaleiros ao trote de animais domados no capricho, portanto bandeiras, exibindo bombacha, faca embainhada, segura por cintos com guaiacas, bota e espora nos pés, chapéu de aba larga, lenços coloridos no pescoço, tudo aprumado para “manter a tradição do gaúcho”, à vista de um publico numeroso e animado com tanto jeito de se provocar admiração por um passado geralmente considerado heroico. Cabe serem examinadas com cuidado as razões dessa lembrança.
O Instituto Humanitas da Unisinos publicou dia 19 deste setembro, em edição já disponível na internet, o número 493 da sua revista, reunindo opiniões de historiadoras/es, em parte dedicada a essa história, com uma chamada de capa expressiva: “Gauchismo: a tradição inventada e as disputas pela memória.”
Duas entrevistas chamam bastante a atenção, a primeira (feita com Mario Maestri) por criticar, de modo contundente, os méritos atribuídos à guerra dos farrapos e a segunda (feita com o Irmão Marista Antonio Cecchin) por mostrar como a revolução do índio Sepé Tiaraju, deflagrada muito antes, no mesmo solo do Rio Grande, foi inspirada em motivação de muito maior valor e significado histórico do que a dos farrapos.
Maestri, depois de contrariar os vícios presentes na formação da própria cultura responsável pela identificação do verdadeiro gaúcho, um homem pobre muito diferente da que passou à história, denuncia:
“A chamada Revolução Farroupilha foi um movimento dos grandes criadores escravistas do meridião do Rio Grande do Sul e do norte do Uruguai. O projeto farroupilha dominante era a fundação de uma república pastoril-latifundiária que ultrapassava a fronteira rio-grandense.” {..}” Os principais líderes farroupilhas eram proprietários de enormes extensões de terras e de cativos no meridião rio-grandense e no norte do Uruguai. Para conseguir seus objetivos, arrolaram nas tropas republicanas peões, minuanos, libertos e muitos cativos – sobretudo dos rio-grandenses monarquistas.” {…} “Bento Gonçalves morreu senhor de muitos cativos; o general Neto, de muito mais!” {…} “Hoje, festejam-se os lanceiros negros como exemplo da participação popular e negra no “Decênio Heróico”. Eles foram massacrados em Porongos e os que não morreram foram reescravizados e enviados ao Rio de Janeiro” {…}”Razão tinham os cativos que fugiram numerosos para os quilombos e para fora da província. Eles não precisavam de historiadores para saber quem eram realmente os chefes farroupilhas.”
E Antonio Cecchin assinala:
“Esse falso tradicionalismo gaúcho, filho adotivo da ditadura, teve todos os meios possíveis e imagináveis ao alcance da mão, com a finalidade de tornar-se avassalador, como de fato aconteceu. Foi internalizado à força como cultura de raiz nossa, graças ao poder principal dessa nossa fase do capitalismo financeiro quando, na realidade, é uma grande mentira. A mídia conservadora se encarregou de consagrar como real aquilo que era apenas fruto da imaginação, pois se trata de algo que acabou absorvido também pela elite dominante no nosso Estado e como tal continua se impondo. A ditadura e o farroupilhismo se sentem bem ao gosto da colonização portuguesa que durou quatro séculos ininterruptos, no Brasil, desde o ano de 1500 até o ano de 1888 quando, apenas teoricamente, foi suprimida a escravatura. Hoje, vivemos ainda sob a hegemonia das elites escravocratas ou do conservadorismo brasileiro, filhote do colonialismo dos “descobridores” da terra brasilis. Haja vista o golpe que esse Brasil conservador acaba de infligir à nossa presidente Dilma , como exemplo atualíssimo de mais um bote certeiro promovido contra as classes populares.”
Sobre o índio Sepé, Antonio afirma: “Sepé Tiaraju é um dos poucos, talvez até o único herói-santo popular deste nosso Rio Grande do Sul. Para a opinião pública hegemônica, que é a do conservadorismo das elites no poder, como sucessoras que são das elites escravocratas portuguesas da colonização inicial, Sepé é um herói muito perigoso porque, desde que surgiram no Brasil, particularmente na Igreja Católica, a opção pelos pobres, as Comunidades Eclesiais de Base, a catequese e a Teologia da Libertação, aproveitamos nosso herói-santo-popular para o empoderamento dos nossos Movimentos Sociais tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, a Via Campesina, os movimentos de mulheres, o Levante da Juventude, os catadores etc.”
20 de setembro, portanto – tomada de Porto Alegre – e 7 de fevereiro de 1756 – morte de Sepé Tiaraju, em combate contra tropas portuguesas e espanholas armadas para exterminarem as missões da Igreja aqui no continente – são datas incomparáveis em seus motivos, na coragem revelada pelos índios por força da desproporção das armas e combatentes, no heroísmo da defesa da terra por amor a ela e ao seu povo e não por interesse em manter um tipo de exploração desse bem dependente de um povo escravo, assim mantido mesmo depois de 1845 quando terminou a guerra.
O hino rio-grandense, até hoje entoado em solenidades as mais diversas exemplifica aquela “tradição inventada” do gauchismo, referida por Mario Maestri. A sua letra insiste num estribilho visando passar a guerra farroupilha como verdadeira defensora da liberdade, assim enchendo de ardor cívico o povo do Rio Grande do Sul, como herdeiro dela: “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra.”
Algum poder futuro, legitimado para tanto, talvez consiga modificar esse hino, salvando a história de perpetuar façanha e modelo como palavras de sentido duplo, a primeira para disfarçar mentira e a segunda para esconder hipocrisia.