15 anos depois
Qual o balanço das causas do Fórum Social Mundial 15 anos depois da primeira edição em Porto Alegre
Reportagem faz o balanço das discussões e propostas que pautaram a esquerda nos primeiros anos do século 21
No início dos anos 2000, Porto Alegre tornou-se a primeira sede do Fórum Social Mundial, uma reunião de ativistas e militantes de diversas organizações sociais internacionais que se manifestavam contra o neoliberalismo, a globalização, a Alca e a miséria global. Gente de diferentes cores e sotaques participando de um grande encontro que se apresentava como um contraponto ao Fórum Econômico Mundial, de Davos, na Suíça. Quinze anos depois, Porto Alegre receberá de 19 a 23 de janeiro uma edição temática para celebrar a data,antecedendo a próxima conferência global, que ocorrerá no Canadá em agosto. Mas o que resta do espírito daquelas primeiras edições no Rio Grande do Sul?
Em janeiro de 2000, o empresário Oded Grajew, então presidente do Instituto Ethos, que estimula a responsabilidade social do setor empresarial, estava em Paris e acompanhava com desconforto as notícias que chegavam do Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. Ouvia falar que o neoliberalismo era o fim da história, que o mercado livre de qualquer regulação iria governar o mundo. E teve um lampejo: por que não fazer um fórum onde o social fosse o mais importante?
Dividiu o pensamento com a mulher, que gostou da ideia, e telefonou em seguida para o amigo Francisco Whitaker, que também estava na França. Empolgados, foram ao Le Monde Diplomatique conversar com o jornalista Bernard Cassen, então diretor do jornal. A partir do encontro, o conceito começou a ganhar forma. Onde seria a sede? Porto Alegre surgiu como uma referência natural, conta Grajew, por fatores como a experiência do Orçamento Participativo, gestado em administrações petistas – em um tempo em que o PT ainda era visto como uma referência de ética na política. Com o aval do então governador Olívio Dutra e do então prefeito Raul Pont, deram início aos preparativos.
Um ano depois, nascia em Porto Alegre o Fórum Social Mundial, propondo ao mundo um contraponto a Davos. Com 117 países representados, 4.702 participantes e 69 painelistas internacionais, somavam vozes por um outro mundo possível, como resumia o slogan do evento. Com diferentes cores e sotaques, militantes de diferentes organizações levantavam bandeiras contra o neoliberalismo e a miséria global. O que de início chegou a ser visto de nariz torcido por empresários locais aos poucos passou a ser apropriado como um símbolo, que projetou a cidade para o mundo. Gente de diferentes nacionalidades movimentava o comércio e a rede hoteleira – e a pluralidade de discussões se afirmou nos anos seguintes como um espaço em que cabiam todas as utopias que pareciam perdidas.
Quinze anos depois, o mundo já não é mais o mesmo – nem o fórum. Porto Alegre sediará de 19 a 23 de janeiro uma edição temática do evento para lembrar a data, com expectativa de atingir 10 mil participantes, em 800 oficinas. Será uma prévia para a próxima edição global, que ocorrerá em Montreal (Canadá), em agosto, prevendo reunir 50 mil pessoas. Desde 2004, o FSM deixou de ser fixo em Porto Alegre e se internacionalizou, passando a ser realizado cada ano em um lugar diferente – o último foi na Tunísia, depois de edições em lugares como Dakar (Senegal, 2011), Nairóbi (Quênia, 2007) e Mumbai (Índia, 2004). As datas passaram a ser aleatórias, o que desfez o ícone de contraposição a Davos. Se antes a resistência ao neoliberalismo se sobressaía, hoje ela divide cada vez mais espaço com bandeiras como a defesa ambiental. Mas o que resta daquela utopia de outro mundo possível? Qual o legado do movimento para este mundo diverso em que vivemos?
Tarso Genro: "Acho que hoje as ideias, o projeto e o modo de vida neoliberal estão vencendo de novo em escala mundial"
– O que avançou muito foi a tomada de consciência de que está nas mãos da sociedade, de que não dá para esperar apenas pelos governos – avalia o idealizador do fórum, Oded Grajew, que atualmente é o coordenador do programa Cidades Sustentáveis, que articula ações apartidárias de estímulo ao setor.
Difusa e multifacetada, a proposta do fórum parece hoje menos palpável do que se prenunciava naqueles primeiros anos. Para o ex-governador Tarso Genro, que era prefeito de Porto Alegre na época do lançamento do FSM, em 2001, a fragmentação de temas é um dos pontos que dificulta o avanço das discussões.
– O fórum nasce com uma aspiração majoritária de se tornar uma Nova Internacional do novo mundo possível, ao mesmo tempo socialista, libertária, ecológica. O problema na minha opinião é que na verdade é impossível ainda alinhavar um programa unitário com essa enorme disparidade de interesses. Como consequência, o fórum vai perdendo força – avalia.
Embora reconheça a importância do encontro para a continuidade das discussões sobre o futuro, Tarso acredita que ele “perdeu aquele vigor político de ser um Fórum Social Mundial contra o sistema”, porque não teria sido capaz de moldar um programa novo, “suficientemente amplo, democrático e convincente para abarcar esses novos movimentos, forças sociais e culturais que surgiram nesse período”. Ele lembra que na edição de Belém (2009), por exemplo, a metade das organizações era política e a outra indefinida, reunindo desde o ecologismo mais radical até associações esportivas.
– Lá a gente já via um processo de fragmentação e de dissolução dessa centralidade do outro mundo é possível, que veio se desdobrando de lá para cá – aponta.
José Maurício Domingues: "A esquerda ficou refém do seu próprio pensamento limitado"
Parte dessa pulverização seria reflexo das próprias dinâmicas da sociedade contemporânea, em que a luta de classes tradicional deu lugar a uma “luta de fragmentos da sociedade”, em que emergem lutas por direitos e questões de costumes, como a questão do feminismo e a defesa ambiental.
– Isso não quer dizer que a luta de classes tenha terminado, mas adquire novas formas – interpreta Tarso.
O contexto político também mudou. Depois de um período de ascensão de governos de esquerda, vem crescendo a inclinação para a direita, com o fortalecimento de posições conservadoras. O cientista político José Luís Fiori, professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ e autor do livro História, Estratégia e Desenvolvimento (Boitempo, 2015), observa que nos últimos 15 anos houve uma diminuição sensível da miséria em muitos países asiáticos e sul-americanos, e mesmo em alguns países africanos. Mas, ao mesmo tempo, ocorreu grande aumento do desemprego e da desigualdade social, na Europa e nos Estados Unidos.
– Não há a menor dúvida que o neoliberalismo segue sendo a ideologia hegemônica em quase todo o mundo ocidental, apesar de que tenha diminuído a crença ingênua na utopia da globalização. Basta olhar para os principais países sul-americanos para medir o peso e a influência atual das ideias e propostas neoliberais – afirma, citando a recente vitória de Macri na Argentina como um dos sinais desse fortalecimento.
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Na avaliação de Fiori, o próprio slogan do fórum resume a um só tempo sua força e sua fraqueza. Se, por um lado, mostra sua veia libertária que privilegia o movimento e luta, por outro não consegue apresentar caminhos ou estratégias capazes de conduzir a humanidade para a direção sonhada.
– A força poética do slogan do fórum convive com sua enorme imprecisão, numa fórmula que consegue sublinhar o denominador comum do fórum, escondendo ao mesmo tempo sua grande dificuldade ou fragilidade. De forma muito genérica, o FSM reúne pessoas e movimentos de todo mundo que se opõem ao sistema capitalista e às suas múltiplas formas de desigualdade e dominação. Mas não tem condições de enfrentar, e muito menos de resolver, o problema de qual será este mundo alternativo ao capitalismo – analisa.
Oded Grajew faz questão de dizer que o “fórum em si não produz nada, quem produz são as organizações”, mas acredita que o evento “oferece a oportunidade, um espaço de encontro e de fortalecimento” para inspirar ações de impacto social. Como exemplo de ideias que teriam sido influenciadas pelo fórum, ele cita o Occupy Wall Street, em 2011, nos Estados Unidos, e a criação do partido Podemos, na Espanha, além de maior pressão sobre governos durante a Cop21, por medidas sustentáveis.
– Depois de 15 anos a gente vê pipocando muitas iniciativas pelo mundo. Aumentou a crença de que as coisas vão melhorar à medida que se aprofunda a democracia participativa, e para isso tem que ter uma sociedade civil muito fortalecida, empoderada. Isso vem da articulação de redes, essa é a ideia do fórum – avalia Grajew.
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Mudou também a própria forma de encarar a política. Grajew lembra que no início se pensava que bastava colocar no poder um partido político aparentemente afinado com as ideias do fórum para que tudo se resolvesse. A eclosão recente de escândalos de corrupção no Brasil seria um dos sinais a comprovar que as saídas são mais complexas.
– Antes ainda se tinha um pensamento da democracia representativa. Hoje se sabe que é preciso uma pressão e uma mobilização permanentes, porque a lógica dos partidos políticos é a lógica do poder – diz Grajew.
O sociólogo José Maurício Domingues, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e autor do livro O Brasil entre o Presente e o Futuro (Mauad, 2015), avalia que a crescente autonomia dos movimentos, que não querem ser tão controlados pelos partidos, trouxe ganhos, como uma maior democratização, mas teme que o distanciamento crescente crie uma “fratura” absoluta nessa relação, que pouco ajudaria a sociedade:
– Tanto os partidos têm que aprender a lidar com esses movimentos, como os movimentos precisam amadurecer para não rejeitar a política institucional, como se fosse sempre algo demoníaco. Temos que trabalhar para criar um novo encontro entre partidos e sociedade – vislumbra.
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Um dos problemas, na avaliação de Domingues, é que a esquerda teria virado refém de seu próprio “pensamento limitado”. Ao assumir o poder, teria se conformado em dar uma face mais “humana” e social ao neoliberalismo, sem mexer na estrutura econômica. O esgotamento desse modelo exigiria novas saídas.
– Hoje está se colocando uma nova situação, a sustentabilidade é um tema muito importante, que galvaniza os jovens. Mas as esquerdas latino-americanas não conseguem entender isso, porque tendem a voltar a um neodesenvolvimentismo com cheiro dos anos 1950 – exemplifica.
Quinze anos depois, o outro mundo possível parece ainda não ter sido decifrado, mas o slogan se mantém como um desafio – não só da esquerda, mas do planeta.
– O mundo que temos hoje é perigoso para toda a humanidade. Vemos que está aumentando a distância entre ricos e pobres, que o planeta está aquecendo, os recursos estão se esgotando.... então um outro mundo não é apenas possível, mas necessário. Se a gente for acreditar nos cientistas, e acho que é bom acreditar, estamos correndo sérios riscos – preocupa-se Grajew.
A PROGRAMAÇÃO EM PORTO ALEGRE
– A edição temática do Fórum Social Mundial em Porto Alegre terá início no dia 19. Mais informações e inscrições pelo site do evento: www.fsm.org.br.
– Segundo o presidente do Instituto Amigos do Fórum Social Mundial Porto Alegre e um dos integrantes do Comitê Organizador, Lélio Falcão, existe a possibilidade de participação da presidente Dilma Rousseff no evento, ainda não confirmada. Apoiadores devem aproveitar o espaço para fazer manifestações contra o impeachment.
– Também estão em andamento discussões para que Porto Alegre volte a ser a sede permanente do fórum a partir do ano que vem, para reforçar sua identidade e voltar a ser uma antítese do Fórum Econômico de Davos.