Cortes em gastos sociais

Cortes em gastos sociais

Ajuste já atinge R$ 111 bi e não poupa a área social

A primeira rodada de cortes de gastos, redução de subsídios e elevação de receitas, concluída sexta-feira pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, já configura um pacote de ajuste fiscal de R$ 111 bilhões. O ministro acredita que as medidas anunciadas até agora serão suficientes para garantir o cumprimento da meta de superávit primário de 1,2% do PIB neste ano. Mas deixou claro que, se o comportamento da receita ficar abaixo do esperado, poderão ser necessários novos ajustes. "Fazemos uma avaliação quadrimestral das receitas e despesas. Se for necessário, vamos revê-las", disse.

A reportagem é de Claudia SafatleLeandra Peres e Ribamar Oliveira, publicada pelo jornal Valor, 02-03-2015.

O ajuste foi obtido da seguinte forma: corte de gastos de R$ 57,5 bilhões; redução de despesas obrigatórias (seguro-desemprego, abono salarial, pensão por morte) de R$ 18 bilhões; aumento da arrecadação de R$ 20,6 bilhões com elevação da Cide, IOFPIS/Cofins sobre importados e IPI de cosméticos.

O aumento das alíquotas da contribuição previdenciária sobre o faturamento, anunciado na sexta-feira, contribuirá com redução de despesas de R$ 5,35 bilhões. A diminuição do subsídio do Reintegra trará economia de R$ 1,8 bilhão. Ainda na conta está a redução do repasse para a CDE, R$ 7,75 bilhões. Total: R$ 111 bilhões.

Os cortes anunciados na semana passada atingiram inclusive os ministérios da área social. O Ministério da Educação, por exemplo, perderá R$ 14,5 bilhões, 31,1% de suas dotações previstas na proposta orçamentária de 2015, se o corte definido para o primeiro quadrimestre for estendido para o resto do ano. Esse é o valor potencial do corte. O Ministério da Saúde perderá 6,7% de suas dotações - corte relativamente pequeno, pois representa um terço da média de todos os ministérios, de 20,3%. A tesoura não poupou o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, responsável pelo Bolsa Família, que perderá 9,4% das dotações orçamentárias ou R$ 3,1 bilhões se o corte for mantido. O ministério das Cidades, responsável pelo programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), perderá R$ 7,3 bilhões ou 28% de suas dotações iniciais.

Medidas anunciadas para conter gastos afetam todos os ministérios da área social

Todos os ministérios da área social foram atingidos pelo corte de gastos anunciado pelo governo na semana passada. O Ministério da Educação, por exemplo, perderá R$ 14,5 bilhões ou 31,1% de suas dotações previstas na proposta orçamentária de 2015, se o corte definido no Decreto 8.412 para o primeiro quadrimestre deste ano, divulgado quinta-feira, for estendido para o resto do ano. Esse é o valor potencial do corte.

A reportagem é de Ribamar Oliveira, publicada pelo jornal Valor, 02-03-2015.

Ainda não se sabe quais programas serão afetados, pois o Ministério da Fazenda fixa apenas os limites de gastos de cada área. Cabe a cada ministro definir onde gastará os recursos.

Ministério da Saúde perderia 6,7% das dotações - corte relativamente pequeno, pois é menos da metade da média de todos os ministérios (20,3%). A tesoura não poupou nem o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, responsável pelo Programa Bolsa Família, que perderia 9,4% das dotações orçamentárias, ou R$ 3,1 bilhões, se o corte for mantido.

Outro ministério da área social afetado é o das Cidades, responsável pelo programa Minha Casa Minha Vida. Ele perderia R$ 7,3 bilhões, 28% de suas dotações iniciais. O corte pode reduzir o ritmo de entrega das casas, pois é o Tesouro que banca os subsídios concedidos aos beneficiários do programa.

No ano passado, o programa custou R$ 17,4 bilhões aos cofres públicos. O corte poderá afetar a promessa de DilmaRousseff de lançar este ano a terceira fase do programa, com contratação de mais 3 milhões de moradias.

Se a diretriz do Decreto 8.412 for estendida para todo o ano, o corte total das dotações da proposta orçamentária de 2015 será de R$ 57,5 bilhões. No valor estão incluídos os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A Fazenda não fala sobre a redução total que será feita nas despesas deste ano, com o argumento de que o Orçamento ainda não foi aprovado e, por isso, não se pode definir o contingenciamento.

No entanto, o ministro Joaquim Levy informou que os gastos discricionários (custeio e investimentos) de 2015 ficarão no nível registrado em 2013 - quando atingiram R$ 227,1 bilhões - para que a meta de superávit primário de 1,2% doPIB para o setor público seja cumprida.

Ao se estender o limite do Decreto 8.412 para todo o ano, chega-se ao valor de R$ 225,5 bilhões para as despesas não obrigatórias neste ano, semelhante ao registrado em 2013. Para alcançar a cifra, o governo teria que cortar R$ 57,5 bilhões nos gastos discricionários fixados em R$ 283 bilhões na proposta orçamentária de 2015 (R$ 283 bilhões menos R$ 225,5 bilhões).

Nesse limite de R$ 225,5 bilhões não estão incluídas as despesas obrigatórias, como o pagamento de pessoal, aposentadorias, bolsas de estudo etc. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) define uma lista de 64 itens que não são passíveis de contingenciamento.

A área mais afetada pelo corte seria o Ministério de Comunicações, que perderia 71,8% das dotações previstas na proposta orçamentária. O único ministério com aumento de dotação seria o do Turismo, que ganharia mais 13,3%.

Outra área muito afetada é a da Defesa. As dotações iniciais para o ministério foram fixadas em R$ 19,9 bilhões na proposta orçamentária, mas seriam reduzidas para R$ 13,4 bilhões, corte de 32,6%. Os investimentos do Ministério da Defesa no âmbito do PAC serão de R$ 3,3 bilhões neste ano, contra R$ 6 bilhões em 2014.

Parte considerável do ajuste fiscal será feita nos investimentos. As dotações do PAC previstas na proposta orçamentária de 2015 foram de R$ 64,98 bilhões. Se o Decreto 8.412 for estendida para todo o ano, os investimentos do PAC seriam reduzidos para R$ 45,53 bilhões, corte de R$ 19,45 bilhões.

 "Imposto sobre grandes fortunas renderia 100 bilhões por ano"

Especialista estima que a taxação de patrimônios acima de um milhão de reais poderia render um valor equivalente ao da extinta CPMF.

A reportagem é de Renan Truffi, publicada por CartaCapital, 03-03-2015.

Único dos sete tributos federais previstos nas Constituição sem regulamentação até hoje, o imposto sobre grandes fortunas pode sair do papel em um momento no qual o governo federal busca ampliar sua arrecadação. Vista como alternativa à esquerda, após um ajuste fiscal iniciado pela retirada de direitos trabalhistas, a proposta voltou à tona com o sucesso do livro do economista francês Thomas PikettyO Capital No Século XXI, para quem não discutir impostos sobre riqueza é loucura.

Mestre em Finanças Públicas e ex-secretário de Finanças na gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo, Amir Khair é especialista no assunto. Em entrevista a CartaCapitalKhair calcula que a taxação de patrimônios poderia render aproximadamente 100 bilhões de reais por ano se aplicada, em uma simulação hipotética, sobre valores superiores um milhão de reais. “Quando você tem uma sociedade com má distribuição de riqueza, você tem uma atividade econômica mais frágil. O imposto sobre grandes fortunas (...) teria uma arrecadação semelhante àquela que tinha a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Portanto bem acima até do ajuste fiscal pretendido pelo governo”, afirma.

Eis a entrevista.

O livro de Thomas Piketty trouxe, mais uma vez, a discussão do imposto sobre grandes fortunas. Por que o senhor acha que essa proposta ainda é vista como uma pauta de esquerda, sendo que está prevista na Constituição?

Pergunta interessante essa. Por que está na Constituição e é uma pauta de esquerda? Talvez a Constituição represente uma regra de convívio social na qual a população de menor renda tenha um pouco mais de acesso aos bens de democracia. A democracia prevê um regime de maior equilíbrio social. Prevê um regime do governo para o povo, de interesse do povo. Quando você estabelece na Constituição um imposto sobre grandes fortunas, que no fundo, independente do nome, é um imposto que visa alcançar riqueza, você está contribuindo para uma melhor distribuição dela entre a população. Esse foi o objetivo dos constituintes em 1988. O que não se esperava é que o próprio Congresso que aprovou isso seja o Congresso a não aprovar a regulamentação desse tributo. E a razão é muito simples. Por que o Congresso não aprova? Porque os congressistas quase sem exceção seriam atingidos por essa tributação. Quando eles são atingidos, eles não aprovam nenhuma mudança tributária que os atinja. Essa é a razão central pelo fato de, ao longo de todos esses anos, não ter sido regulamento o imposto.

O imposto sobre grandes fortunas é o único dos sete tributos previstos na Constituição que ainda não foi implementado. Então não é só a influência dos mais ricos, mas o fato do Congresso ser também uma representação da camada mais rica da população?

É uma visão curto-prazista, no sentido que você estaria defendendo o interesse dos mais ricos, mas na essência você estaria prejudicando até a essência dos mais ricos. Quando você tem uma sociedade com má distribuição de riqueza, você tem uma atividade econômica mais frágil. Eu não tenho o consumo usufruindo no potencial que ele tem. Quando você tem o consumo usufruindo o potencial que ele tem, você tem mais produção, mais riqueza de uma forma geral e é claro que os mais ricos se apossam melhor dessa riqueza gerada. Quando você tem má distribuição de riqueza ou de renda, você tem uma atividade econômica mais restrita e consequentemente menos faturamento nas empresas, menos lucro.

Nesse início de segundo mandato, o governo Dilma optou por fazer um reajuste fiscal e reviu o acesso a alguns direitos dos trabalhadores, como o seguro-desemprego. Mas agora cogita a possibilidade de regulamentar o imposto sobre a riqueza. Na opinião do senhor, o imposto sobre grandes fortunas poderia ter o mesmo peso, ou até um impacto melhor, para o ajuste das contas do governo, sem que fosse necessário mexer nos direitos trabalhistas?

Se aplicado com uma alíquota média de 1% sobre aquilo que são os bens das pessoas, teria uma arrecadação semelhante àquela que tinha a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), que foi extinta. E tem, portanto, um poder arrecadador forte. Hoje eu estimo em cerca de 100 bilhões de reais/ano. Portanto bem acima até do ajuste fiscal pretendido pelo governo.

Portanto, seria uma alternativa a todas essas medidas que o governo vem tomando desde o início do segundo mandato e que desagradaram trabalhadores e movimentos sociais?

Sim, eu acho que seria uma medida desenvolvimentista em essência porque não atinge aquilo que é essencial aos trabalhadores, portanto aquilo que se traduz efetivamente em consumo. Quando você corta direitos dos trabalhadores você corta consumo automaticamente. Cortando consumo, você corta faturamento e o lucro delas. Então você paralisa o País também ao fazer isso. Essas medidas que o governo está adotando, independente do fato que você tem que ter rigor fiscal, e rigor fiscal não se toma com essas medidas do governo, estão muito aquém do rigor fiscal necessário ao País. Essas medidas travam o crescimento. Ao travar o crescimento, cai a arrecadação pública. Ao cair a arrecadação pública, o objetivo do governo de atingir sua meta não será atingido.

Quais as consequências e como o senhor avalia a postura do governo de fazer corte nesses benefícios trabalhistas?

É uma atitude um pouco simplista, uma atitude que não resolve. Como eu falei, quando você corta na base da pirâmide social você diminui consumo e, portanto, diminui a própria arrecadação pública. Então uma coisa anula a outra, ou até pior do que anula. Pode acontecer como aconteceu no passado. Você tem um déficit muito maior das contas públicas e não resolve. O governo teria uma alternativa muito mais eficaz, muito mais forte, muito mais rápida, muito mais factível, caso reduzisse as despesas com juros. Os juros no ano passado corresponderam a 6% do PIB[Produto Interno Bruto] e isso gerou um rombo nas contas públicas. Quer dizer, o que deu um rombo nas contas públicas foram os juros. E o Brasil é um dos campeões mundiais de juros.

O Brasil tem sempre sobre a questão fiscal um ônus de 6% do PIB, quando no mundo todo gira em torno de 1%. Então quando você tem uma conta anormal por consequência dos juros, a providência mais normal, óbvia, é você atacar essa questão. Essa é a questão central e é fácil de atacar. Como você ataca? Reduzindo a Selic [taxa básica de juros]. A Selic está muito acima do padrão internacional, o padrão internacional das taxas básicas de juros é a inflação do País. Nós estamos com seis pontos acima da inflação na Selic. Quando você reduzir isso para a inflação do País, essa conta de juros cai rapidamente e, ao cair rapidamente, você faz um ajuste fiscal sério, para valer. Muito diferente do que o governo está propondo.

Segundo Piketty, o imposto sobre grandes fortunas poderia ser atrelado à diminuição da carga tributária sobre o consumo. Como o senhor enxerga essa proposta?

Na realidade, você tem o seguinte: o Brasil tem uma distorção tributária muito grande porque taxa em excesso o consumo e subtributa o patrimônio e a renda. Consequentemente você faz com que os preços no Brasil de diversos bens fiquem majorados em torno de 50%. Então uma pessoa vai comprar um bem, ela está pagando o valor sem os impostos mais 50% de impostos ligados ao consumo. Quando você tem uma tributação mais equilibrada, como nos países desenvolvidos, essa tributação sobre o consumo não excede 30%. Então você tem bens a preços melhores para o consumo da população. Quando você tem imposto sobre grandes fortunas entrando no compto tributário, você permite aliviar uma parte dessa tributação do consumo sem sacrificar a arrecadação pública. E, quando você faz isso, você está tomando medidas pró-crescimento. E medidas pró-crescimento repercutem do ponto de vista fiscal na melhoria da arrecadação e, portanto, na parte mais saudável das finanças públicas.

Na sua opinião, qual deve ser o valor mínimo de patrimônio a ser taxado para que apenas os ricos sejam atingidos?

Há várias propostas em discussão com relação à tributação. Eu acho que você deve isentar uma parcela da população. Com patrimônios de cerca de um milhão de reais você já tira dessa tributação 95% ou 98% da população brasileira. Então essa tributação vai incidir em 2% ou 5% da população. E, ao estabelecer essa tributação, você não precisa colocar alíquotas elevadas, essas alíquotas podem ficar no nível de 1% no máximo e ter, ainda assim, esse potencial de arrecadação que eu falei, com 100 bilhões de reais/ano.

Além de regulamentar o imposto sobre grandes fortunas, Piketty fala ainda na importância de taxar a herança. O senhor concorda?

A tributação da herança é além da questão da tributação das grandes fortunas. É prevista na Constituição e é de fato usada no Brasil. Representa em torno de 4% de tributação sobre o valor da herança. No mundo todo essa tributação é acima de 30%. No Brasil é muito baixo e a razão é a mesma que falei: isso [aumento da tributação] não passa nas assembleias legislativas e não passa no Congresso. Essa alíquota de 4% é uma das mais baixos do mundo. Então se você tivesse uma tributação sobre herança no nível internacional, por volta de 30%, você estaria também aliviando impostos sobre consumo e consequentemente melhorando atividade econômica e arrecadação pública.

Quanto o aumento dessa alíquota sobre a herança poderia gerar a mais de arrecadação? Há alguma estimativa?

Não tem no momento isso. A tributação sobre herança é conhecida como Imposto sobre Transmissão Causa Mortis, imposto que pertence exclusivamente aos estados e, se você aumentasse, melhoraria arrecadação dos estados. Os estados têm poder, independentemente do governo federal, de mudar esse percentual de 4%, mas nenhum governador tem interesse em fazer isso porque nenhum governador representa os interesses efetivos da população na questão tributária.

Em um debate sobre o assunto, o jurista Ives Gandra se colocou contra o imposto sobre grandes fortunas ao justificar que a medida causaria a fuga de grandes patrimônios para outros países ou paraísos fiscais. O senhor acredita que isso pode acontecer? Como regular para que não haja fuga de patrimônio?

Eu queria saber que patrimônio que iria para outros países. E se for, que vá. Será bom até que vá. O que interessa é que o grosso do patrimônio fica no nosso País. E os que pensam que vão lucrar com essa questão de sair do País se enganam porque nos outros países o Imposto de Renda não é tão baixo como aqui, com 27,5%, a alíquota mais baixa do mundo. Em outros países é 40%, 50%, 60%. Então se alguém pensa que vai para outro país para se dar bem...pode ser que exista alguma ilha no mundo, mas talvez não caiba tanta gente.

Quer dizer que a legislação tributária aqui é tão branda quando se trata de patrimônio e renda que em qualquer País os ricos seriam mais prejudicados?

Eu acho que sim. Esse argumento é muito fraco, quase ninguém mais usa ultimamente porque na realidade essa ameaça de que vão sair do País não se concretiza. É muito boa [para os ricos] essa questão tributária. Pessoas que têm mais renda, mais riqueza, são muito bem agasalhas pela legislação do Brasil.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que chegou a fazer uma proposta de imposto sobre grandes fortunas em 1989 recuou dessa ideia há algum um tempo ao dizer que o valor estipulado por ele, anos antes, para servir de linha de corte poderia atingir a classe média. O valor, atualizado, era algo em torno de 940 mil reais. Quase o mesmo que o senhor propõe. Esse valor atinge a classe média?

É uma classe média alta. Se você olhar bem a distribuição de renda, é classe média alta e aquilo que falei sobre 95% da população estar fora disso é real. Então acho que o ex-presidente FHC se engana. É normal ele se enganar quando trata de questões de interesse da população.

O sistema financeiro trava a economia do país

Não é mais possível não vermos o papel dos atravessadores que travam a economia. Não há PIB que possa avançar com tantos recursos desviados

A conta é simples.

O crédito no país representa cerca de 60% do PIB. Sobre este estoque incidem juros, apropriados por intermediários financeiros. Analisar esta massa de recursos, na sua origem e destino, é por tanto fundamental.

O comentário é de Ladislau Dowbor, formado em economia política, é professor titular no Departamento de Pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, nas áreas de economia e administração, publicado por Rede Brasil Atual – RBA, 04-03-2015.

O economista sintetiza um artigo de 14 páginas, cuja versão integral pode ser acessada aqui.

É bom lembrar que o banco é uma atividade “meio”, a sua produtividade depende de quanto repassa para o ciclo econômico real, não de quanto dele retira sob forma de lucro e aplicações financeiras. Aqui simplesmente foram juntadas as peças, conhecidas, pare evidenciar a engrenagem, pois em geral não se cruza o crediário comercial com as atividades bancárias formais e os ganhos sobre a dívida pública, e muito menos ainda com os fluxos de evasão para fora do país.

O principal entrave ao desenvolvimento do país aparece com força.

O reajuste financeiro é vital, não o reajuste fiscal proposto, compreensível este último mais por razões de equilíbrios políticos do que por razões econômicas.

Pense que o crediário cobra, por exemplo, 104% para “artigos do lar” comprados a prazo.

Acrescente os 238% do rotativo no cartão, os mais de 160% no cheque especial, e você tem neste caso mais da metade da capacidade de compra dos novos consumidores drenada para intermediários financeiros, esterilizando grande parte da dinamização da economia pelo lado da demanda. O juro bancário para pessoa física, em que pese o crédito consignado, que na faixa de 25 a 30% ainda é escorchante, mas utilizado em menos de um terço dos créditos, é da ordem de 103% segundo a Anefac.

A população se endivida muito para comprar pouco no volume final. A prestação que cabe no bolso pesa no bolso durante muito tempo. O efeito demanda é travado.

Os bancos e outros intermediários financeiros demoraram pouco para aprender a drenar o aumento da capacidade de compra do andar de baixo da economia, esterilizando em grande parte o processo redistributivo e a dinâmica de crescimento.

Efeito semelhante é encontrado no lado do investimento, da expansão da máquina produtiva, pois se no ciclo de reprodução o grosso do lucro vai para intermediários financeiros, a capacidade do produtor expandir a produção é pequena, acumulando-se os efeitos do travamentos da demanda e da fragilização da capacidade de reinvestimento.

Quanto ao financiamento bancário, os juros para pessoa jurídica são proibitivos, da ordem de 40 a 50%, e criar uma empresa nestas condições não é viável. Existem linhas de crédito oficiais, mas compensam em parte apenas a apropriação dos resultados pelos intermediários financeiros.

Terceiro item da engrenagem, a taxa Selic. Com um PIB de 5 trilhões, um por cento do PIB representa 50 bi. Se o superávit primário está fixado em 4% do PIB, por exemplo, são cerca 200 bi dos nossos impostos transferidos essencialmente para os grupos financeiros, a cada ano. Com isso se esteriliza parte muito significativa da capacidade do governo de financiar mais infraestruturas e políticas sociais. Além disso, a Selic elevada desestimula o investimento produtivo nas empresas, pois, é mais fácil – risco zero, liquidez total – ganhar com títulos da dívida pública.

E para os bancos e outros intermediários, é mais simples ganhar com a dívida do que fomentar a economia buscando bons projetos produtivos, o que exige identificar clientes, analisar e seguir as linhas de crédito, ou seja, fazer a lição de casa. Os fortes lucros gerados na intermediação financeira terminam contaminando o conjunto dos agentes econômicos.

Assim entende-se que os lucros dos intermediários financeiros avancem de 10% quando o PIB permanece em torno de 1%, e o desemprego seja tão pequeno: o país trabalha, mas os resultados são drenados pelos crediários, pelos juros bancários para pessoa física, pelos juros para pessoa jurídica e pela alta taxa Selic. É a dimensão brasileira da financeirização mundial.

Fechando a ciranda, temos a evasão fiscal. Com a crise mundial surgem os dados dos paraísos fiscais, na faixa de 20 trilhões de dólares segundo o Economist, para um PIB mundial de 70 trilhões.

O Brasil participa com um estoque da ordem de 520 bilhões de dólares, cerca de 25% do nosso PIB. Ou seja, estes recursos que deveriam ser reinvestidos no fomento da economia, não só são desviados para a especulação financeira, como sequer pagam os impostos no nível devido.

Já saíram, por exemplo, os dados do Itaú e do Bradesco no Luxemburgo, bem como domispricing (fraude nas notas fiscais) que nos custa 100 bi/ano, enviados ilegalmente para o exterior, segundo pesquisa do Global Financial Integrity, além dos fluxos canalizados pelos HSBC e outros bancos.

Junte-se a isto o fato dos nossos impostos serem centrados nos tributos indiretos, com os pobres pagando proporcionalmente mais tributos do que os ricos, e temos o tamanho do desajuste. De certa forma, temos aqui o espelho do que o Piketty analisa para os países desenvolvidos. O artigo completo abaixo constitui uma sistematização do mecanismo, apresentado de uma forma que qualquer não economista possa entender. E se trata do bolso de todos nós. As contas batem. Os dados são conhecidos, aqui se mostra como se articulam.

texto não é um “artigo” de opinião acadêmica, e sim um relatório sobre como a engrenagem foi montada. Uma ferramenta que espero seja útil para nos direcionarmos, pois precisamos de muito mais gente que se dê conta de como funciona o nosso principal entrave.

Não há PIB que possa avançar com tantos recursos desviados.

O problema não é só de um “ajuste fiscal”, e sim de um ajuste fiscal-financeiro mais amplo.
Tanto o consumidor, como o empresário-produtor e o Estado na sua qualidade de provedor de infraestruturas e de políticas sociais têm tudo a ganhar com isto. Um empresário com quem discuti este texto me disse que estava gastando mais com juros do que com a folha de pagamento. Aqui temos até interesses comuns entre empresários efetivamente produtivos, situados na economia real, e os trabalhadores que querem se tornar mais produtivos e ganhar melhor.

 

Valor Economico




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