O futuro da escola está no “contraturno”

O futuro da escola está no “contraturno”

 

Em entrevista do programa Roda Viva, da TV Cultura, ainda nos anos 90, o escritor norueguês Jostein Gaarder respondeu da seguinte maneira à pergunta se ele não se interessava por temas do ocultismo ou discos voadores, ao invés da trivialidade do cotidiano em suas obras: “Isso me parece ser obrigado a atravessar um rio para buscar água do outro lado”.

Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador. É fundador do MEL (Media Education Lab) e autor do livro Idade Mídia: A Comunicação reinventada na Escola, publicado pela editora Aleph.

Uma educação baseada em projetos, sem disciplinas estanques, estimuladora do empreendedorismo e autonomia do estudante e desenvolvedora de habilidades e competências para este século existe neste momento – não é uma promessa de futuro.  E mora no chamado “contraturno” de escolas que realizam iniciativas interessantes, alguns em parcerias com universidades. Mas gestores do ensino parecem cegos de tanto enxergá-las.

Muitas atividades extra-curriculares, por exemplo, formam o cenário ideal para que a tecnologia e os espaços “makers” sejam experimentados, catalisando a inovação e provocando a criatividade.

Há uma busca desenfreada por inovação no ambiente escolar (de vocação conservadora).  Este movimento não ordenado soa como buscar água do outro lado do rio.  Muitas vezes a instituição desenvolve soluções importantes na grade extra-curricular. Mas as atividades de “contraturno” foram sempre discriminadas como ações de menor importância dentro de uma escola conteudista e pós-industrial.

É como se, no turno, as disciplinas acadêmicas ou curriculares (Matemática, Línguas, História etc.) fossem a parte importante da escola e o período de contraturno, a recreação para passar o tempo (Teatro, Esporte, Desafios Científicos, Jornal Escolar etc.). Muitas escolas certamente duplicam o fracasso do currículo por mais um período e chamam isso de educação integral – mas há tantas outras com projetos inovadores.

O auto-boicote é tão grande que nem mesmo sistemas de avaliação foram desenvolvidos para as chamadas áreas “não-cognitivas” da educação – afinal, brincadeiras não careciam ser avaliadas.

Os anos 60 e 70,  com o surgimento dos Cieps no Rio de Janeiro e outros projetos de educação integral,  pareciam que chamariam a atenção da sociedade para o lado oculto do cotidiano escolar. Não foi o que aconteceu.  Tais movimentos reforçaram algo positivo, que é a integralidade do ensino – mas, sem perceber, mantiveram o currículo como o eixo central da escola.  A cena conservadora se reflete até hoje, nos discursos dos candidatos à eleição deste ano.

Há um desafio ululante maior: como transformar o chamado “contraturno” na escola em si. E reduzir o tempo de sala de aula, mas não o de envolvimento do aluno com o conhecimento.

Para isso, há o desafio de montar uma mandala pedagógica de conhecimentos, habilidades e competências que atenda tanto a necessidade de compreender a programação de computadores e de se comunicar, como as de se expressar com conhecimento da Língua Portuguesa e fazer operações matemáticas.

Por outro lado, o vestibular continua vivo e passa bem. Não há como ignorá-lo. Essa é a principal barreira para um ensino que considera a habilidade de “fazer” tão importante como a de “pensar”. Mas não deve servir de bode expiatório para justificar a imobilidade da escola perante as transformações do mundo. Uma educação menos escolarizada e mais baseada no “fazer” depende muito da sociedade enxergá-la como transformadora e exigir as mudanças.

Educação Integral desafia métodos tradicionais de ensino

Por Camila Caringe

A diretora da Fundação SM e ex-secretária de Educação Básica do MEC, Maria do Pilar Lacerda, acredita que sem discussão do currículo a escola continuará defasada frente às demandas de um mundo em transformação. “As atividades do contraturno frequentemente aparecem apartadas do conteúdo regular, o que pode gerar mais conflitos do que contribuições.” Para ela, seria preciso organizar uma curadoria local para refletir como projetos pedagógicos de Organizações Não Governamentais (ONGs) dialogam com a dinâmica escolar.

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Pilar ainda defende a descentralização do ambiente de ensino, que acaba oferecendo todo o tipo de serviço. “A gente tem que devolver as crianças para a rua, no bom sentido. Podemos e devemos dar um atendimento multidisciplinar, mas não necessariamente dentro da escola. O aluno pode estar no serviço de saúde, por exemplo.”

Pilar entende que a garantia dos direitos da criança e do adolescente não é só papel do poder público. O direito ao alimento, descanso, recreação, educação e convivência familiar é responsabilidade de todos os agentes sociais. “Vejo que ainda causa estranheza em algumas pessoas que não se possa espancar uma criança ou que ela não possa trabalhar.”

Ela afirma que ainda estamos longe de uma situação ideal, mas a infância de agora inaugura uma geração de direitos e deveres. “Não existe uma coisa sem a outra. Se você só tem direito e não tem dever, não exerce efetivamente a cidadania”. De acordo com a ex-secretária, os projetos de educação falam em “formar cidadãos ativos, críticos e conscientes”. “Mas aí a gente chega na escola e esses são os que estão lá na sala da diretora. Isso é democracia: segurar a crítica de um menino de oito anos. É difícil, mas muito enriquecedor.”

O papel da cultura

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que pouco mais de 5% dos brasileiros entraram, pelo menos uma vez, em bibliotecas ou museus. Apenas 13% vão ao cinema. A média de leitura no País é de 1,7 livro per capita ao ano. Mais de 90% dos municípios brasileiros não têm cinema, biblioteca, teatro. Nas grandes cidades, os equipamentos culturais estão concentrados nos bairros de classe média e no centro.

Juca Ferreira, secretário de Cultura de São Paulo

“O Brasil disponibilizou sua população para a TV aberta”, reflete o secretário de Cultura de São Paulo e ex-Ministro da Cultura, Juca Ferreira. Para ele, é necessária uma política de Estado para a valorização da atividade e da dimensão cultural na vida das pessoas. “A cultura não pode ser entendida apenas como as artes. Ela é todo o vasto território simbólico de uma comunidade, nação, cidade, que vai de valores e fazeres à gastronomia.”

Por qualificar o lazer e inserir as crianças na sociedade de forma efetiva, o secretário defende que a vivência cultural comece na escola e seja uma meta dos projetos de educação integral. Ele ressalta que o papel das instituições educacionais vai além de preparar seus alunos para o universo do trabalho: devem capacitar pessoas para vivenciarem uma subjetividade complexa.

Segundo Juca Ferreira, as escolas que não dialogam com as culturas locais têm dificuldade para firmar uma relação profunda com o mundo das crianças. Mas essa relação precisa ser mais abrangente e promover o diálogo com a cultura nacional e global. “Nem tudo é produzido localmente e é importante que todos tenham acesso e aprendam o caminho para, durante toda a vida, irem se alimentando e se desenvolvendo culturalmente.”

Nesse modelo, as ONGs desempenham um papel relevante por constituírem grupos de práticas que, muitas vezes, são o principal ou único acesso à experiência estética e cultural de comunidades urbanas, rurais e indígenas.  Entre as atividades que promovem estão clube de livro, cinema, música ou dança tradicionais, oficinas de conscientização e debates públicos.

Maria do Pilar Lacerda e Juca Ferreira estiveram presentes no Seminário Educação Integral: Crer e Fazer, em ocasião da 10ª edição do Prêmio Itaú-Unicef, ocorrido nos dias 2 e 3 de abril, em São Paulo.

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