Alfabetização que não alfabetiza

Alfabetização que não alfabetiza

'Alfabetização no Brasil não alfabetiza'

Doutor em desenvolvimento da cognição e psicolinguística, o português José Morais defende o envolvimento da neurociência na alfabetização para reformar os pensamentos pedagógicos

Fonte: O Globo (RJ)  21 de julho de 2014

 

Que contribuição a psicologia cognitiva pode dar à pedagogia?

A psicologia cognitiva examina os processos mentais em uma grande variedade de situações, incluindo as de aprendizagem. A pedagogia será, portanto, mais bem fundamentada se levar em conta o que a psicologia cognitiva nos mostra sobre a percepção, a atenção, a memória, a imaginação, o pensamento, e sobre o desenvolvimento de todas estas capacidades. E até sobre as relações entre a cognição e a motivação, por um lado; e as emoções e os afetos, por outro lado.

E no caso da alfabetização?

A psicologia cognitiva nos mostra, entre muitas outras descobertas, que a leitura de textos não é uma elaboração contínua de hipóteses sobre as palavras do texto, mas sim, um processo automático, não intencional e muito complexo de processamento das letras e das unidades da estrutura fono-ortográfica de cada palavra, que conduz ao seu reconhecimento ou à sua identificação.

Como é a relação entre a atividade cerebral e a leitura?

A leitura visual não se faz nos olhos, mas no cérebro — a retina, embriologicamente, faz parte do cérebro. Não há leitura sem uma atividade cerebral que mobiliza vastas regiões do cérebro e, em primeiro lugar, a chamada Área da Forma Visual das Palavras. Ela se situa no hemisfério esquerdo do cérebro e não é ativada por palavras escritas nos indivíduos analfabetos. Nos alfabetizados ela é ativada fortemente, e o seu grau de ativação aumenta à medida que a criança aprende a ler. No leitor competente, a leitura de um texto baseia-se no reconhecimento ou na identificação das palavras escritas sucessivamente. À medida que elas são processadas, essa informação é enviada para outras áreas cerebrais que se ocupam do processamento da língua, independentemente da modalidade perceptiva (em particular, o processamento semântico e sintáxico), assim como da codificação da informação na memória de trabalho verbal e do acesso à memória a longo prazo. Tudo isso permite a compreensão do texto e a sua interpretação e avaliação.

Considerando essas atividades cerebrais, existe uma idade ideal para alfabetização? Qual seria?

Hoje sabemos que a plasticidade cerebral é muito maior e mais longeva do que imaginávamos há 30 anos, variando segundo o tipo de aquisição. Cognitivamente, as crianças podem aprender a ler aos 5, 6, 7 anos, sem que a diferença de idade se reflita mais tarde em diferenças de habilidade de leitura. Há crianças que aprendem a ler antes dos 5 anos, mas generalizar isso não parece desejável, porque para o desenvolvimento global da criança, é indispensável que ela passe muito tempo brincando e se relacionando com os outros.

Mas é correto fixar uma idade padrão para alfabetizar?

É uma obrigação social e moral que o Estado fixe a idade de início da alfabetização. Se as crianças da elite aprendem aos 5 ou 6 anos na família ou em colégios particulares, não está certo que as do povo só sejam alfabetizadas (capazes de ler com compreensão e de escrever) aos 8 anos. Está se desviando a atenção daquilo que realmente é importante: a política certa, política de reprodução de privilégios ou política pública realmente democrática.

Suas pesquisas ressaltam a importância dos sons atrelados à palavra escrita e clamam para que a alfabetização tenha mais exercícios fonéticos. Como eles devem ser?

De modo geral, devem ser atividades que conduzam a criança a compreender o princípio alfabético, isto é, o que as letras (mais exatamente os grafemas, o que inclui dígrafos como “ch”) representam. Não sons da fala, mas sim as unidades elementares que os linguistas chamam de fonemas e das quais a criança não toma consciência espontaneamente pelo simples fato de ser exposta a material escrito.

Qual a importância do ditado e da leitura em voz alta nesse contexto?

O ditado e a leitura em voz alta só intervém, obviamente, quando o aluno já entendeu o principio alfabético e já adquiriu o conhecimento de um número suficiente de relações fonema-grafema e grafema-fonema. Ambos são muito importantes para assegurar o sucesso da alfabetização. Através do ditado, aluno e professor podem ir avaliando o conhecimento da ortografia, e, através da leitura em voz alta, eles não só vão avaliando a precisão da leitura como o aluno vai ganhando fluência, rapidez na leitura, que é essencial para a automatização do reconhecimento das palavras escritas e para deixar os seus recursos cognitivos (de atenção, de associação, de memória) para a compreensão do texto.

Os exercícios fonéticos podem ser aplicados ainda na pré-escola?

Na pré-escola é importante verificar a qualidade fonética da fala da criança e também solicitar dela a tomada de consciência de relações como a da rima (mão – pão) ou de partilha de sílaba (va- em vaca e vala) e de fonema (fazer com que a criança se aperceba de que há algo comum no início de porta, pato, pilha, pele, punho). Tudo isso são passos sucessivos que preparam a criança para a sua alfabetização.

É possível aprender a ler de forma natural como aprender a falar, como prega a teoria construtivista?

Se fosse possível aprender a ler de forma natural, como se aprende a falar, não haveria falantes analfabetos, não haveria necessidade de escolas para alfabetizar, não haveria toda esta bagunça a propósito da alfabetização. Claro que se baseia em algo de natural: a linguagem, uma capacidade que resulta da nossa evolução biológica enquanto espécie. Os sistemas de escrita, inventados por civilizações antigas para representar a linguagem (e também, inicialmente, objetos e ideias), são realizações culturais que vão muito além da nossa evolução biológica e que, para serem reproduzidas de geração em geração, exigem intencionalidade, instituições, dispositivos, ensino.

O método de alfabetização proposto pelo Ministério da Educação do Brasil hoje se enquadra em qual teoria? Como o senhor avalia a alfabetização brasileira?

Infelizmente, baseia-se na crença construtivista — chamo de crença porque contraria o conhecimento científico atual. No Pisa (programa internacional de avaliação de estudantes, na sigla em inglês), não houve variação significativa entre a primeira versão, de 2000, e a última, de 2012. O Brasil está muito abaixo da média dos países e quase 80 pontos abaixo de Portugal, que tem a mesma língua, o mesmo código ortográfico, e as diferenças de dialeto deveriam até ser mais favoráveis à alfabetização no Brasil. Só 1 em mil adolescentes brasileiros lê no nível mais alto de desempenho estabelecido pelo Pisa. A taxa de analfabetismo continua demasiado alta e, sobretudo, quase metade da população não lê de maneira competente. O Ministério da Educação não pode continuar a manter uma proposta de alfabetização que não alfabetiza.  

Aprendizagem adequada durante a alfabetização ainda é maior desafio

Apesar de 93% das crianças estarem na escola, maior parte tem dificuldade para ler, escrever e fazer contas

Fonte: Diário do Nordeste (CE)  21 de julho de 2014
 

Image-0-Artigo-1662461-1Problemas de raciocínio e interpretação de texto são os mais comuns. Também faltam acompanhamento e estímulo em casa, por parte dos pais   

 Fotos: Kid Júnior

Universalizar a educação infantil, alfabetizar todas as crianças até o final do 3º ano do ensino fundamental, fomentar a qualidade da educação básica e investir 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação são algumas metas do Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado no último dia 26 de junho, pela presidente Dilma Rousseff. Aprovado com três anos de atraso, o Plano é composto por 20 metas que deverão ser alcançadas nos próximos dez anos (até 2024).

No Ceará, 93% das crianças de 4 e 5 anos estavam na escola em 2012 (239.205) e a meta é atingir 100% até 2016. Apesar da quantidade significativa, superior inclusive à média nacional (82,2%), chama a atenção a má qualidade do ensino, revelada pelos baixos índices de aprendizagem. Levando em conta que uma criança só é considerada alfabetizada quando se apropria da leitura e da escrita como ferramentas essenciais para seguir aprendendo, desenvolvendo a sua capacidade de se expressar e de participar do mundo cultural no qual está inserido, o cenário não é nada animador.

Aprendizado Em todo o Estado, apenas 42,15% das crianças do 3º ano do ensino fundamental apresentaram aprendizado adequado em leitura. Porém, a situação mais preocupante é a do aprendizado adequado em matemática (18,83%) e em escrita (18,44%), ainda muito aquém do esperado - 100% até 2024. Em relação à média nacional, os índices do Ceará também estão bastante inferiores. O porcentual de todos os estados foi de 44,54% de aprendizado adequado em leitura, 33,33% em matemática e 30,09% em escrita.

Aos 5 anos, Ana Lívia Silva, aluna da Escola Municipal Mozart Pinto, no bairro Jardim América, ainda não sabe fazer contas, mas já se encanta pelo universo da leitura. Ao ser questionada sobre qual era o seu nome completo, de prontidão começou a soletrar letra por letra. "O que eu mais gosto é de conhecer letras", enfatiza. Ela conta que na escola aprendeu a ler histórias. As suas preferidas são da Mônica e sobre duendes.

Já Raíssa Costa da Silva, 5, tem como histórias preferidas as do Saci Pererê. Ela também gosta de desenhar, mas diz que a sua atividade preferida é brincar com os colegas na sala de aula. Apesar de afirmar que gosta de fazer contas, Raíssa confessa que tem dificuldades, mas tem a ajuda do pai em casa. "É difícil. Eu não sei, porque só tenho 5 anos", justifica.

Jacqueline Lucas Costa Lima, professora do Infantil V da Escola Mozart Pinto comenta que geralmente as crianças têm dificuldade de raciocínio e interpretação de texto. Um grande problema que identifica é a falta de diálogo, acompanhamento e estímulo por parte dos pais em casa. "Leitura e interpretação textual é o que mais se batalha na escola, mas não tem continuidade em casa. O professor tem que fazer milagre, pois o que as crianças aprendem é em sala de aula. Em casa, falta estímulo para elas pensarem", ressalta.Image-0-Artigo-1662456-1                       

   Entre os problemas estão a não universalização da educação básica e a má qualidade do ensino público, revelada nos baixos índices de aprendizagem

Outra crítica que faz é em relação à aprovação progressiva. Trata-se dos alunos que são matriculados de acordo com a idade, e não com nível em que estão. "Isso é muito prejudicial, o professor não tem como dar atenção a um só aluno. A criança do terceiro ano que não sabe ler e nem escrever vai se sentir diminuída porque não consegue acompanhar e vai acabar bagunçando, atrapalhando a aula. E o mais grave, ela vai se desinteressar pelos estudos", alerta.

Inês de Freitas Segundo, coordenadora pedagógica da Escola Mozart Pinto, informa que a Prefeitura de Fortaleza vem há algum tempo fazendo com os professores um trabalho de formação continuada, que acontece mensalmente.

Acrescenta, ainda, que é disponibilizado pelo Governo do Estado todo um material estruturado - o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic) -, para diferentes faixas etárias e níveis de aprendizado. "Estamos trabalhando nessa linha de embasamento de um material que possa dar suporte à alfabetização para que a criança possa aprender", esclarece.

O observatório do PNE informa também que, no ensino fundamental, a porcentagem de crianças de 6 a 14 anos matriculadas no Ceará em 2012 era de 93,8% (1.290.234), igual à média nacional (93,8%), enquanto os jovens de 16 anos que concluíram o ensino fundamental somavam 139.960 (70%), superando a média dos estados (67,4%).

No ensino médio, eram 445.302 jovens de 15 a 17 anos na escola em 2012 (82,8%) e 297.540 matriculados no ensino médio (55,3%), enquanto a média nacional foi de 81,2% e 54,4%, respectivamente. A partir do PNE, todos os planos estaduais e municipais de educação devem ser criados ou adaptados em consonância com as diretrizes e metas estabelecidas.

Problemas no Estado são estruturais Apesar dos avanços que o Ceará vem apresentando nos últimos anos, muito ainda precisa ser feito para garantir uma educação de qualidade para todos. Na visão da pedagoga Raquel Dias, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), ainda que se considerem alguns avanços no que diz respeito à redução da taxa de analfabetismo e elevação dos índices do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no Estado, analisando o conjunto percebe-se que alguns problemas são estruturais.

"A não universalização da educação básica (0 a 17 anos), uma vez que a atenção concentra-se no ensino fundamental; a má qualidade do ensino público, revelada nos baixos índices de aprendizagem; a não valorização dos profissionais da educação, evidenciada no elevado percentual de professores temporários na rede estadual que alcança 60% do total e nas precárias condições de trabalho", cita.

Em relação à meta que trata da destinação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação, embora se apresente como uma conquista, afirma que na forma em que foi aprovada poderá inviabilizar a efetivação das metas direcionadas especificamente ao segmento público, pois possibilita a destinação de recursos públicos para a privada, através do Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), do Programa Universidade para Todos (Prouni), de isenções de impostos, de bolsas. No entanto, a especialista destaca que não se trata de rever a meta, mas o próprio caráter do Plano, que se revela privatista.

Aplicação Para melhorar os índices e a qualidade da educação pública do Ceará, Raquel afirma que seria necessário, em primeiro lugar, a aplicação imediata de 10% do PIB na educação pública. Junto com isso, redefinir prioridades do orçamento dos governos federal, estaduais e municipais, dando atenção especial à educação e às políticas sociais. Outra política nesse sentido que cita seria a definição de um plano de obras públicas visando a construção de escolas e creches.

Reginaldo Pinheiro, vice-presidente do Sindicato Apeoc, ressalta que o PNE é importante porque trata de questões fundamentais no que tange ao financiamento da educação. Ele afirma que hoje o Ceará investe 6,4% do PIB na educação, mas a meta é que seja 10% em 2024. Para isso, frisa que é necessário que os recursos dos royalties do petróleo e do pré-sal sejam contabilizados para a educação.

Outro ponto importante que o sindicalista pontua é em relação à formação, remuneração e carreira dos professores. "A gente considera central que até o 6º ano de vigência do plano o salário dos professores da educação básica seja equiparado ao rendimento médio (salário) dos demais profissionais com escolaridade equivalente", salienta.

Efetivação Para Pinheiro, o grande desafio é para que os estados e municípios possam, a partir de uma discussão com a sociedade civil organizada e os sindicatos, elaborar os seus planos com base nas metas do PNE. "Não tem mais a desculpa de que não há um parâmetro nacional", destaca. Ele afirma que já se pode comemorar os avanços que o plano traz, mas reforça que a luta agora é para que as metas sejam alcançadas e se tornem política de estado, e não de governo.

"Temos que cobrar para que os governos efetivem o que está proposto no plano e que ele seja aprovado em consonância com a lei federal", conclui Pinheiro.

Confira aqui os gráficos da situação no estado do Ceará.

 

 Estado foca em formação docente

Para garantir a alfabetização até o 3º ano, Cristiane Holanda, coordenadora da Comissão Interinstitucional do Plano Nacional de Educação (PNE) informa que a Secretaria de Educação do Estado (Seduc) vem permanentemente fazendo um trabalho para garantir um material estruturado para a alfabetização e formação docente, com professores e diretores de escolas. "Temos um sistema de reconhecimento, valorização e qualificação do professor alfabetizador", frisa. Para isso, a Seduc instituiu o Prêmio Escola Nota 10, com um sistema de avaliação com critérios muito apurados.

A gestora acrescenta que outro avanço foi em relação a diretrizes curriculares, planejamento com conteúdo sistematizado e estratégias que podem ser desenvolvidas por professores com indicações de metodologias de trabalho. Diferente da meta nacional, no Ceará, a meta é garantir a alfabetização até o 2º ano.

Complementa que o Estado não é favorável com a proporção automática - promover todos os alunos, independente de ele ter aprendido ou não. "Ele precisa aprender a ler e escrever bem para seguir os estudos. A gente quer dar ênfase na garantia da proficiência", ressalta.

Para obter resultados diferenciados, Cristiane afirma que a Seduc vai realizar um trabalho diferenciado em Fortaleza e em mais cinco municípios onde foram identificados um grande número de não alfabetizados ou com alfabetização incompleta. São eles: Caucaia, Itapipoca, Maracanaú, Juazeiro do Norte e Crato. Conforme a Seduc, eles concentram 633 alunos não alfabetizados e 2.343 com alfabetização incompleta. O destaque é para Fortaleza que, desse total, concentra 67,2% de alunos não alfabetizados e 66,5% com alfabetização incompleta.

Comissão Cristiane informa ainda que há mais de um ano o Estado vem estudando as estratégias do PNE com uma comissão interinstitucional formada por conselhos estaduais e municipais de educação, fóruns, sindicatos, entre outros. O grupo se reúne pelo menos uma vez por mês e a ideia é que, até o fim de dezembro, essa comissão técnica faça uma versão preliminar para ser discutida no início do ano com intuito de ser validada com a sociedade. Ao todo, serão feitas três grandes conferências para que o plano estadual seja enviado à Assembleia até o fim de março.

A portaria 0668/2014 - Gab institui a comissão estadual representativa da sociedade para elaboração e adequação do plano estadual de educação. Mesmo reconhecendo que ainda tem muito trabalho para fazer, a coordenadora do PNE no Estado ressalta que o Ceará avançou significativamente nos últimos oito anos.

Em nota, a Secretaria Municipal de Educação informa que, desde 2007, Fortaleza possui um plano municipal de educação. Existe uma comissão que se reúne periodicamente para adaptar o plano municipal ao Plano Nacional de Educação. Em relação ao financiamento, afirma que Fortaleza destina 26,5% do PIB para a educação.  

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