Vivas à Revolução dos Cravos!

Vivas à Revolução dos Cravos!

José Geraldo de Santana Oliveira*

O poeta português Sá de Miranda, do século XVI, em seu emblemático e belíssimo poema “Comigo me desavim”, retrata com refinada ironia os seus desentendimentos consigo mesmo, registrando:

Comigo me desavimsou posto em todo perigonão posso viver comigonem posso fugir de mim Com dor, da gente fugia,antes que esta assim crescesse:agora já fugiriade mim, se de mim pudesse Que meio espero ou que fim do vão trabalho que sigo,pois que trago a mim comigo,tamanho inimigo de mim.”

Ao que parece, este enigmático poema foi escrito sob medida para Portugal, como se colhe de sua multissecular história de venturas e desventuras.

Primeiro, dividiu com a Espanha o domínio dos mares, chegando a com ela assinar o Tratado de Tordesilhas, em 1494, que simplesmente dividia o mundo entre os dois; em 1500, deu-se o achamento do Brasil, do qual Portugal se apossou, só o largando 322 anos depois.

As proezas de Portugal pelos mares afora foram poeticamente imortalizadas pelo seu poeta maior, Fernando Pessoa, em seu poema “Mar Português”, que assim assevera:

Ó mar salgado, quanto do teu salSão lágrimas de Portugal!Por te cruzarmos, quantas mães choraram,Quantos filhos em vão rezaram!Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, ó mar!”

Mas, ainda no século XVI, começam as suas desventuras, com o domínio espanhol, de 1580 a 1640; a partir do início desse domínio, as Ordenações Filipinas tornaram-se as normas dominantes, em Portugal, até 1830, e, no Brasil, até a Constituição de 1824.

Apesar de se separar da Espanha em 1640, Portugal nunca mais recuperou o seu apogeu; ao contrário, de tratado em tratado, foi se afundando; em 1703, com o de Methuen, matou a sua indústria por mais de um século.

Em 1807, vergonhosamente, a família real portuguesa fugiu de Portugal, para o Brasil – caso único na história -, deixando o povo e o país abandonados à própria sorte, o que facilitou a sanha expansionista de Napoleão Bonaparte, que os entregou ao seu irmão, José Bonaparte.

Em 1808, chegando ao Brasil o príncipe regente Dom João, além de abrir os portos “às nações amigas”, assinou com a Inglaterra o Tratado de Aliança de Amizade, por meio do qual esta pagava menos impostos, no seu comércio com o Brasil, do que Portugal. Isto sem contar que os súditos ingleses, aqui, seriam julgados apenas por um juiz inglês.

Fazendo-se um corte histórico, salta-se ao ano de 1933, quando Portugal foi submetido ao cruel jugo da ditadura de Oliveira Salazar, que o infelicitou por longos 41 anos, pois que durou até 1974. Esse foi o período ditatorial mais longo da história depois da ditadura Líbia, de Kadafi – que durou 42 anos -, superando, inclusive, o da Espanha, com o facínora Francisco Franco, que foi de 1939 a 1976.

Aos 25 de abril de 1974 teve desfecho, em Portugal, um dos mais belos movimentos populares de redemocratização de um país, com a Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura salazarista, devolvendo-o ao leito democrático.

Esse inesquecível e vitorioso movimento, que recebeu apoio popular do mundo inteiro, renovou os ânimos do povo brasileiro na sua longa trajetória de luta contra o regime militar de 1º de abril de 1964, com nítida influência em outros países, também, assoladas por sangrentas ditaduras.

A inapagável lição da Revolução dos Cravos não se resumiu ao dia 25 abril, quando se esparramaram, pelo país, cravos vermelhos, alcançando até mesmo os fuzis, que, felizmente, não se voltaram contra o povo, como acontecera ao longo dos 41 anos anteriores; um dos mais belos espetáculos de democracia foi dado pelos portugueses quando cercaram o Congresso Nacional em defesa de uma Constituição efetivamente democrática, que não era o que este pretendia. Esse imortal momento, que contou inclusive com a adesão das tropas do exército, ficou conhecido como o cerco da Constituinte.

A Constituição Portuguesa, fruto da ousadia e do destemor do povo português, influenciou fortemente a do Brasil, de 1988, aquela que o saudoso deputado federal Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte, chamou, com justiça, de a Constituição cidadã.

É verdade que, hoje, Portugal precisa retomar os caminhos da Revolução dos Cravos, que, repita-se, encantou e envolveu o mundo; pois que, como diz um de seus ilustres filhos, Boaventura Souza Santos, caminha, a passos largos, para ser politicamente democrático e, socialmente, fascista.

Contudo, esses percalços, em que pesem as suas dimensões, não empanam o brilho e a indelével marca da Revolução dos Cravos.

Registra-se que, se Portugal teve a desventura de produzir o sanguinário ditador Oliveira Salazar, o segundo mais longevo ditador da história, ao reverso deu ao mundo grandes e imortais nomes do teatro, da poesia, da literatura, da docência e do direito – que, parafraseando Einstein, podem e devem, sem nenhum favor, ser chamados de cidadãos do mundo -, como Gil Vicente, Camões, Sá de Miranda, Alexandre Herculano, Eça de Queirós, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Álvaro Cunhal, Florbela Espanca, José Saramago, José Pacheco – criador da Escola da Ponte -, J. J. Canotilho, Boaventura Souza Santos, Rui Canário, Rui Martins (apenas para citar alguns); e mais: deu-lhe também a Revolução dos Cravos.

Por derradeiro, há de se destacar que a Revolução dos Cravos, não obstante a sua condição de consagradora e imortal vitória do povo português, tornou-se um símbolo mundial de luta em prol da democracia, embalando mais de uma geração, magnificamente cantada por Chico Buarque na sua perene música “Tanto Mar”:

Sei que está em festa, páFico contenteE enquanto estou ausenteGuarda um cravo para mim Eu queria estar na festa, páCom a tua genteE colher pessoalmenteUma flor no teu jardim Sei que há léguas a nos separarTanto mar, tanto marSei, também, que é preciso, páNavegar, navegar Lá faz primavera, páCá estou doenteManda urgentementeAlgum cheirinho de alecrim Foi bonita a festa, páFiquei contenteAinda guardo renitenteUm velho cravo para mim Já murcharam tua festa, páMas certamenteEsqueceram uma sementeNalgum canto de jardim Sei que há léguas a nos separarTanto mar, tanto marSei, também, quanto é preciso, páNavegar, navegar Canta primavera, páCá estou carenteManda novamenteAlgum cheirinho de alecrim”

Por isto, hoje e sempre, deve ser reverenciada, por todos quantos amam a democracia e repudiam as ditaduras.

Vivas à Revolução dos Cravos!

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

http://contee.org.br/contee/index.php/2014/04/vivas-a-revolucao-dos-cravos/#.U1sB11c7ebQ

 

O 25 de abril de 1974 e o cheiro de alecrim…

Lá faz primavera, pá

Cá estou doente

Manda urgentemente

Algum cheirinho de alecrim”

(Tanto mar – Chico Buarque)

 

2010-04-25024549_CA967162-B341-4FEB-88DD-FECB0766BF67$$738d42d9-134c-4fbe-a85a-da00e83fdc20$$1e657dc8-d42f-4849-b7fe-b7326dba70d0$$odia_imagem_grande$$pt$$1No dia 25 de abril de 1974, armados de cravos vermelhos e amor pela liberdade, os cidadãos portugueses puseram fim às mais de quatro décadas de ditadura salazarista no país e inspiraram, no Brasil, aqueles que lutavam contra a repressão do regime militar, instaurado dez anos antes. Hoje, quando se comemoram os 40 anos do fim do governo ditatorial em Portugal – no mesmo mês em que os brasileiros, ao contrário, “descomemoram” os 50 anos do golpe de 1964, o Portal da Contee traz uma entrevista exclusiva com o secretário-geral da Fenprof, Mário Nogueira, que fala sobre o simbolismo da Revolução dos Cravos e a luta atual dos trabalhadores por melhores condições de vida.

Contee – Neste dia 25 de abril, Portugal comemora os 40 anos da Revolução dos Cravos. O que essa data simboliza para a sociedade e, sobretudo, para os trabalhadores portugueses?

Mário Nogueira - Essa é a data mais importante para o Portugal dos nossos dias e para os portugueses. Ela significou liberdade e democracia e, com elas, é possível, comparando, confirmar a enorme importância do 25 de Abril de 1974. Grande parte dos portugueses vivia em situação de miséria. Portugal era um país atrasado, essencialmente rural, a igreja tinha um peso enorme no controlo sobre as pessoas. Havia presos políticos, uma guerra colonial em que muitos jovens eram obrigados a matar e por lá morriam, muitos portugueses eram obrigados a emigrar para sobreviver… A escola era frequentada por poucos e só as elites prosseguiam para o ensino superior; a saúde era mínima e a segurança social, pouco mais que assistencialista. Havia polícia política que tinha agentes e muitos informadores que podiam ser o vizinho ou o colega de trabalho, havia censura, as crianças, logo na escola primária, pertenciam à Mocidade Portuguesa (a juventude fascista) e em adultos, muitos integravam a Legião Portuguesa. Após o 25 de Abril de 1974, muito foi conquistado e construído pelo nosso povo e é com grande preocupação que vemos, por imposição do governo e interferência da troika, as coisas a andarem para trás. Portanto, o 25 de Abril significa muito para os portugueses e sobretudo para a classe trabalhadora, pois foi para ela que Abril se fez. Por essa razão, como afirmamos, Abril para ser Abril terá de continuar em Maio transformando o vermelho dos cravos no vermelho da luta dos trabalhadores que no 1º de Maio ganha sempre uma expressão ainda maior.

Contee – Como se dará a articulação das comemorações de uma revolução democrática tão importante e a luta atual dos trabalhadores contra a troika? Este momento pelo qual passa Portugal pode ser considerado um ataque à democracia no país?

MN - As comemorações serão marcadas por uma grande contestação às políticas de direita que devastam o nosso país e, naturalmente, exigindo como alternativa uma política de esquerda, patriótica e soberana. Na nossa página web a frase será “Por Abril, outra política e outro governo!”. Assim, sem deixar de festejar Abril, a revolução que se fez com cravos e festa popular, Abril será de luta. Uma luta que estará nas ruas, uma luta pela democracia, contra o empobrecimento e o aumento da exploração dos trabalhadores, uma luta em defesa das funções sociais do Estado; uma luta em defesa do Estado de Direito Democrático que começa também a ser posto em causa. Na verdade, este momento por que Portugal passa constitui um ataque desferido contra a democracia, como nunca aconteceu nos últimos 40 anos. É verdade que se pode votar e que ninguém vai preso por dizer mal do governo, mas a qualidade da democracia portuguesa, em domínios como social ou o laboral está muito degradada. Há jovens que são obrigados a emigrar para sobreviver; há trabalhadores cujo rendimento fica abaixo do limiar da pobreza; há cada vez mais pobreza e exclusão; há idosos que têm de optar entre comer e comprar os medicamentos que os mantêm vivos… A Democracia, em Portugal, está doente. Infelizmente, parece-me que este não é um problema local.

Contee – Neste mês em que Portugal celebra o fim dos 41 anos de Estado Novo, o Brasil, por sua vez, relembra o contrário: o início, há 50 anos, dos 21 anos mais sombrios da história do país. O que o senhor destaca de comum entre as forças conservadoras que fizeram as duas nações mergulharem em décadas de regime ditatorial e as lutas das sociedades portuguesa e brasileira pela restauração da democracia?

MN - Portugal não viveu 41, mas 48 anos sob uma ditadura fascista. Eu não chamaria forças conservadoras, mas fascistas aos que, em Portugal, perseguiram, prenderam, torturaram, violaram, roubaram e mataram. A ditadura foi violenta, aqui como no Brasil. Num lado como em outro, os governantes serviram uma classe minoritária privilegiada que concentrou em si toda a riqueza; usou as forças armadas e policiais para reprimir; recorreu à polícia política; censurou textos, arte, pessoas; muitas vezes, pela manipulação ou pelo medo, teve do seu lado gente que explorou; desprezou todos os que apenas serviam para serem explorados na sua força de trabalho. Cá, como aí há que ter cuidado pois os saudosistas espreitam uma oportunidade e por cá já chegaram ao governo os que querem ajustar contas com Abril e com a Democracia. Aí ainda não e espero bem que o povo brasileiro não deixe que isso aconteça. Não tarda, poderemos estar a pedir aos irmãos brasileiros que mandem urgentemente um cheirinho de alecrim…

portugalContee – O que essas lutas de décadas atrás trazem de lição para o presente?

MN - Trazem-nos sobretudo esperança num futuro melhor. O tempo hoje é de preocupação, mas não tão negro como era então. Eu diria que, no nosso caso, está cinzentão, mas ainda assim, porque não temos deixado, longe do negro que então cobria Portugal. Olhando nós para o que se passou e vendo como as pessoas nunca deixando de lutar, revelando esperança e confiança no futuro, então, nós só temos de ter a força dos nossos pais – que nos ofereceram um Portugal Democrático – para honrarmos essa herança lutando para que também os nossos filhos possam herdar de nós um futuro em que possam viver e ser felizes.

Leia o artigo de Mário Nogueira: Neste abril, gritos mil de indignação e revolta

Da redação
Crédito da foto: D.R. – Correio da Manhã

http://contee.org.br/contee/index.php/2014/04/o-25-de-abril-de-1974-e-o-cheiro-de-alecrim/#.U1sCxFc7ebQ

 

 




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