A produção de conhecimento

A produção de conhecimento

Trabalho docente e produção de conhecimento

O texto visa a analisar uma das atividades atribuídas ao professor de educação superior no Brasil: a produção do conhecimento. Inicia com a caracterização do trabalho docente na atualidade. Discute as políticas de pós-graduação já implementadas no país, as induções propostas e a avaliação desse nível de ensino. Ao final, analisa criticamente a produtividade acadêmica e seus impactos no ato de investigar, em especial nas ciências humanas e sociais.

Deise Mancebo

Qual é a dádiva que nos faz contrair tamanha dívida, nessa dialética entre premiação e castigo? Por que afinal fazemos mais do que queremos e mais do que podemos, até o limite da exaustão?(Bourdieu, 2004, p. 39)

1. Introdução: educação superior e trabalho docente no Brasil
Os docentes são uma das grandes categorias profissionais da atualidade. No Brasil tínhamos, em 2009, por ocasião do último Censo (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2010), aproximadamente, 341 mil funções docentes, com atuação na educação superior.


Esse universo é bastante diversificado em todos os sentidos, mas há consenso quanto à consideração da natureza imaterial desse trabalho, o que significa admitirmos um especial empenho do afeto e do intelecto desse trabalhador em seu campo de atuação e nas diversas tarefas que executa.
Também há concordância na consideração de que o trabalho docente se realiza no sentido de conferir uma qualidade especial à mão de obra, que é a mercadoria básica no processo de produção do valor. Como apresentado por Rosso (2009):

O conhecimento que as pessoas detêm, o relacionamento, a cooperação, a capacidade de inovação e de invenção, a busca de soluções, a subjetividade, o crescimento individual e coletivo das pessoas, tudo isto depende da ação do processo educacional. A mercadoria força de trabalho, portanto, contém uma indelével participação conferida pelo trabalho docente. (p. 12)

É também consensual, no campo dos estudos críticos, que num contexto internacional marcado pela mundialização econômica e pelas políticas neoliberais o lócus do trabalho do docente de ensino superior é marcado por dois movimentos interligados, que apontam para sua privatização.Em primeiro lugar, ocorre um crescimento desmedido e praticamente sem controle da oferta privada desse tipo de ensino. Informes apresentados na Conferência Mundial sobre Educação Superior, organizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), ocorrida em julho de 2009, em Paris, mostraram claramente o crescimento explosivo da oferta privada, que já detém 30% da matrícula mundial no ensino superior. Mais da metade da população estudantil do México e do Chile, por exemplo, já recebe educação nessas instituições, cujo ânimo é o lucro. No Brasil, o percentual de matrículas na rede privada não para de crescer, alcançando em 2009, conforme dados do último Censo, o patamar de 73,59%.


O segundo sentido da privatização pode ser localizado na própria rede pública. Em direta relação com a insuficiência de financiamentos, muitos docentes – em especial, docentes-pesquisadores – passam a participar do processo de captação de recursos para a pesquisa, para a instituição e até para si, gerando, em algumas situações, contratos com empresas privadas, que promovem o financiamento privado de instalações e investigações finalisticamente orientadas, além do estabelecimento de sistemas de patentes sobre resultados científicos logrados e a transferência de tecnologia das universidades para a empresa.
Tudo isso junto representa uma ameaça cultural de primeira ordem para a investigação científica básica e, de maneira geral, para toda a cultura superior. Não é objetivo deste texto a análise, em profundidade, dos múltiplos vetores que contribuíram para o aprofundamento da dupla face de privatização da educação superior brasileira, todavia merece registro histórico que tal ampliação ocorreu, no Brasil, diretamente relacionada a dois outros movimentos de acomodação do capitalismo brasileiro, aqui citados tão somente para elucidar a base teórica de onde se parte. 

 

Primeiramente, a expansão da educação superior (e sua privatização) ocorre no mesmo diapasão e para o atendimento das mudanças contemporâneas ocorridas na produção e valoração do capital, a reestruturação produtiva, que teve seu início sistematizado, no Brasil, a partir da década de 1980 e, em segundo lugar, toma impulso e ganha organicidade a partir da reforma gerencialista do Estado, posta em movimento em 1995, pelo então ministro Bresser Pereira e em curso até os dias atuais. A partir desses vetores, pode-se verificar profundas modificações na cultura e no cotidiano das instituições, nas relações entre o Estado e as instituições públicas, mas, sobretudo, no trabalho do professor e do pesquisador desse nível de ensino, motivo deste estudo.

E o que faz o professor da rede superior de ensino? Do ponto de vista jurídico, o artigo 207 na Carta Constitucional de 1988 relaciona os princípios de autonomia e de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Em seguimento, a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n. 9394/96 aprofundou a implantação de um modelo de educação superior regulamentado pelos interesses e demandas do mercado educacional, ao institucionalizar na educação brasileira a figura de instituições de ensino superior que podem prescindir da pesquisa e da extensão, valendo-se apenas do ensino. 

Do ponto de vista da legislação, portanto, convive-se no Brasil com dois modelos de instituições de ensino superior: as universidades (em número de 186 e correspondendo a aproximadamente 8% do total de instituições), cujos docentes devem atender aos preceitos da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, e demais instituições de ensino superior (2128 instituições ou 92% do total), que podem atuar apenas através do ensino, via de regra circunscrito aos instrumentos para o exercício de uma profissão.
Todavia, no dia a dia acadêmico, faz-se muito mais. 

Seguindo tendência predominante no mundo do trabalho, sob a acumulação flexível, o trabalho docente, além de precarizado, também foi flexibilizado e intensificado1, mediante o aprofundamento de uma nova sociabilidade produtiva que alcança o limite extremo da autoexploração.
Assim, os professores de educação superior preparam e ministram cursos na graduação e pós-graduação, orientam estudantes na graduação e na pós-graduação, organizam eventos, elaboram estratégias de busca de financiamento, fazem gestão das relações entre grupos acadêmicos, estabelecem comunicação entre pares, "escolhem" formas de produzir e ter sucesso na publicação de um número importante de artigos em revistas conceituadas no seu respectivo campo de atuação, concorrem em editais, buscam parceria na iniciativa privada, preenchem pareceres on line de um número crescente de bolsistas, de revistas, de eventos, de pedidos de financiamento de seus pares e ocupam-se cada vez mais com tarefas administrativas, como alimentação de planilhas, elaboração de relatórios e assim por diante.

Digno de referência é que, no contexto do trabalho imaterial, o docente é submetido a novos parâmetros para a exploração de sua força de trabalho, precisamente a partir de um uso hiperotimizado do tempo, o que é alcançado através de sua subjetividade criativa e participativa no processo de produção. Constrangidos à pressa e ao atarefamento diário, o tempo necessário à reflexão e à pesquisa realmente inovadora é, muitas vezes, proscrito como inatividade.
Tomando por base os direcionamentos acima, este texto visa a aprofundar, precisamente, este último aspecto, perguntando-se: como anda a produção do conhecimento, em que condições se vem desenvolvendo e que "resultados" tem alcançado, tomando como referência o trabalho intelectual universitário no Brasil.

2. Trabalho docente e produção de conhecimento

Deve-se assinalar, preliminarmente, que a produção de ciência, tecnologia e inovações tecnológicas são imprescindíveis para que o capitalismo possa renovar-se e ampliar sua margem de riqueza, a partir da base industrial consolidada (Pochmann, 2008). As universidades ocupam, portanto, um papel destacado no processo de produção de conhecimento-mercadoria, isto é, aquele que, tornando-se tecnologia e inovação tecnológica, agrega maior valor aos produtos consumidos no mercado interno ou para exportação.

No Brasil, o lugar precípuo de produção de conhecimento e da decorrente centralidade da pesquisa é a pós-graduação que, em 2009, compreendia 2.718 programas (em sua grande maioria localizados na rede pública), com 4.300 cursos (entre mestrados, doutorados e mestrados acadêmicos), absorvendo 45.035 docentes permanentes, 11.401 colaboradores e 815 visitantes, com uma população estudantil de 93.016 mestrandos, 57.917 doutorandos e 10.135 estudantes em mestrados profissionais2.

Especificamente em relação à Psicologia, estudo recentemente publicado por Hutz, Rocha, Spink e Menandro (2010) corrobora a supremacia da pós-graduação no que tange à produção de conhecimento, ao indicar que:

a produção gerada a partir da pós-graduação em relação à produção total, o exame das publicações da área [de Psicologia] permite estimar que a participação da pós-graduação (não apenas o que é produto direto das atividades dos cursos, mas também aquilo que decorre dos desdobramentos das pesquisas e da formação que resultaram desses cursos) é absolutamente majoritária. (p.24)

2.1 Políticas de Pós-graduação no Brasil

As políticas públicas de ciência e tecnologia começaram a se estruturar como tal, no Brasil, na década de 50 do século XX, fundamentalmente através das grandes agências de fomento à pesquisa, ainda hoje as mesmas (CNPq e CAPES). Somente em 3 de dezembro de 1965, em pleno regime militar, o então denominado Conselho Federal de Educação aprova o Parecer nº 977 (Conselho Federal de Educação, 1965), o Parecer Sucupira, que reconhece as experiências do sistema de pós-graduação como um novo segmento da educação e estabelece o primeiro formato de sua base institucional, diferenciando dois níveis: o de mestrado e o de doutorado. Assim, desde sua origem, as políticas de Estado e as instituições de educação superior exercem seus efeitos diretamente sobre o sistema de pós-graduação, sobre os sujeitos individuais (pesquisadores), sobre os atores institucionais (programas de pós-graduação) e sobre o campo da produção do conhecimento científico e tecnológico.

Um curso de pós-graduação no Brasil, para ter validade nacional, deve ser recomendado pela CAPES; posteriormente, será avaliado anualmente e pontuado de três em três anos, o que cria um sistema de controle e regulação de cada um dos cursos e do espaço social que integram. Por outro lado, o que é de extrema importância, a mesma agência que avalia (CAPES) define parte substancial do financiamento dos diversos cursos, detendo assim uma margem de poder bastante ampla no que diz respeito à indução (onde deseja que o crescimento do sistema ocorra) e ao controle do seu cumprimento.Sobre a indução, em termos gerais, pode dizer-se que, em princípio, o sistema de pós-graduação brasileiro procurou formar professores no ensino superior, e essa intenção aparecia claramente no I Plano Nacional de Pós-Graduação (I PNPG/1975-1980). A partir de 1982 (II PNPG/1982-1985), a principal preocupação passou a ser com o desempenho, a qualidade, e, consequentemente, a avaliação do sistema ganha densidade e investimentos. 

Após o III PNPG (1986-1989), a indução recai para o desenvolvimento de pesquisas nas universidades. Mais recentemente, desde o V PNPG (2005-2010)3 , ocorre uma indução mais forte e definida, em que o crescimento do sistema de pós-graduação é direcionado para o que o país necessita, conforme avaliação governamental, tanto em termos do próprio avanço do conhecimento quanto no que tange aos grandes problemas nacionais ou regionais. Ocorre, ainda, uma tentativa de estabelecer laços mais fortes com as empresas, o que ganhou contornos mais nítidos com a promulgação da Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004 (que institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública); com o Decreto n. 6.260, de 20 de novembro de 2007, conhecido como Lei de Inovação Tecnológica (que viabiliza a transferência de tecnologia das universidades e centros de pesquisa para as empresas, prevendo a incubação de empresas no espaço público, a possibilidade de compartilhamento de infraestrutura, equipamentos e recursos humanos, o afastamento de pesquisadores das universidades públicas para tentar transformar seus inventos em negócios, além de autorizar o aporte de recursos orçamentários diretamente à empresa, no âmbito de um projeto de inovação) e, por fim, com a regulamentação dos mestrados profissionais no âmbito da CAPES, através da Portaria Normativa n. 17, de 28 de dezembro 2009 (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, 2009).
Para os objetivos deste texto, interessa-nos destacar do exposto que é a partir de 1986 que ocorre uma indução mais forte da pesquisa na pós-graduação. 

Considerando que os recursos para pesquisa não são suficientes para toda a demanda do país e que sua distribuição ocorre a partir da avaliação da produtividade do pesquisador ou da equipe de investigação ou ainda do Programa de pós-graduação, não é difícil chegar-se à dedução de que ocorre um aumento significativo na competição por recursos e uma encarniçada corrida pela produtividade.
Especificamente na área da Psicologia, o estudo de Hutz et al. (2010), já citado, apresenta informações bastante elucidativas. Conforme os autores, em 2007, dos 760 docentes permanentes que atuavam na pós-graduação de Psicologia, somente 220 (aproximadamente 29%) possuíam bolsas de produtividade do CNPq. 

Cabe assinalar que esse percentual seria exponencialmente menor se considerados todos os docentes que atuam na educação superior da área. O mesmo estudo (Hutz et al., 2010) corrobora a inevitável corrida para a produtividade: a média anual de itens publicados por docente permanente dos Programas de pós-graduação em Psicologia, considerando tão somente a publicação de artigos, livros e capítulos de livros, sofreu um aumento de 71% do triênio 1998-2000 ao triênio 2004-2006, subindo de 2,32 produtos anuais por docente para 3,27.

2.2 - Efeitos da produtividade no ato de produzir

Pode-se definir produtividade acadêmica como:

O quantum de produção intelectual, sobretudo bibliográfica, desenvolvida num espaço de tempo específico, crescente de acordo com a qualificação acadêmica ("titulação") do professor/pesquisador. Esse quantum básico é necessário para conservar os pesquisadores na sua posição estatutária em seu campo científico. (Luz, 2005, p.43)

A produtividade é medida, especialmente, em termos de publicação acadêmica nos veículos com melhor reputação nos respectivos domínios do conhecimento, devendo-se relevar, conforme Costa e Yamamoto (2008), que

entre as diversas avaliações pelas quais passam as revistas brasileiras (CNPq e Fundações de Amparo a Pesquisa para financiamento, SciELO e outras bibliotecas, indexadores em geral), é a avaliação empreendida para a baseQualis que tem gerado grande repercussão na comunidade de Psicologia (p.15)

e, certamente, nas demais áreas. O propósito inicial da base Qualis era subsidiar a avaliação da pós-graduação brasileira, já que a produção científica é o item com maior peso para a pontuação e classificação dos Programas. Todavia, o potencial derankeamento da base Qualis foi tão forte que o objetivo inicial

foi extrapolado, e hoje a classificação obtida pelos veículos surte um efeito significativo na comunidade científica. Os resultados da referida avaliação têm servido como ferramenta para auxiliar na concessão de financiamentos, para a inclusão dos títulos em bibliotecas e indexadores, para orientar pesquisadores e leitores no momento de escolha de títulos para submissão de seus trabalhos ou pesquisar material bibliográfico de relevância, para estimular editores a elevar o padrão de qualidade considerado pelas avaliações a fim de manter financiamentos, entre outras circunstâncias.(Costa & Yamamoto, 2008, p. 16)

Em síntese, o quantum de produção dos docentes é estipulado atualmente, em quase todos os campos disciplinares, em termos de papers editados em periódicos de circulação nacional ou internacional, cuja qualidade de divulgação (base Qualis) é estabelecida por cada área de conhecimento (Luz, 2005, p.43).Assim, não é difícil se compreender que a competição acaba por se estender à luta ferrenha entre artigos (e livros) que buscam a ocupação de espaços editoriais – o escoadouro almejado para os resultados dos esforços investigativos, mas também para a manutenção (ou não) das esferas de prestígio e influência (Castiel, Sanz-Valero, & Mel-Cyted, 2007).

A alta produtividade é o resultado inevitável, que se transforma em política de Estado, independente dos governos, torna-se quase autoadministrada, e cria um efeito perturbador sobre a atividade científica, especialmente com a crescente sofisticação dos instrumentos de avaliação.

1. Primeiramente, pode-se verificar, de acordo com estudos realizados pelas próprias agências financiadoras (CNPq e CAPES), que é surpreendente o aumento da produção científica brasileira em revistas internacionais.Muitas revistas brasileiras também têm sido indexadas no Institute for Scientific Information (ISI) - a base de dados que reúne estatísticas da Thomson Reuters sobre o que é considerado o melhor em revistas científicas. Esse fato é frequentemente comemorado como um reconhecimento da qualidade dos periódicos do Brasil na arena internacional (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 2009), mas já há um crescente coro de cientistas que tenta chamar a atenção para um efeito adverso: algumas revistas científicas brasileiras estão "ameaçadas de extinção" pelo novo critério de avaliação adotado pela CAPES para a base Qualis, que hierarquiza as publicações de acordo com sua importância nas respectivas áreas do conhecimento (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 2009).

Desde 2008, com a adoção de uma estrutura única para classificação das revistas, onde os periódicos brasileiros competem com empresas estrangeiras no mesmo ranking (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 2009), muitas publicações nacionais, antes entre as melhores na sua área, agora ocupam estratos mais baixos da base Qualis e, em consequência, muitos autores preferem enviar seus artigos para o exterior, o que já vem comprometendo a existência de alguns periódicos4.

Na área da Psicologia, o uso dos fatores de impacto tem gerado acirrado debate, pois "como feita até aqui não apura citações em livros, mas apenas em artigos de determinado grupo de periódicos, e só essa informação é suficiente para mostrar sua fragilidade em áreas nas quais a publicação em livro tem peso substancial" (Hutz et al., 2010, p.32).

2. Outro efeito importante e bastante prejudicial no que tange ao ensino superior refere-se à relação com a graduação. A pressão para produzir artigos é tão forte que, em geral, o professor-pesquisador não tem tempo e, em muitas circunstâncias, sequer tem vontade de ensinar. Encontra-se mais interessado em sua carreira de investigação que, como explicado acima, é cada vez mais resumida à publicação de artigos em revistas e livros em sua área.

3. O incremento no número de artigos remete à sensação de que há algo de irracional e até antiético sobre toda essa atividade. Em suma, está se tornando insustentável participar em pesquisas inovadoras e de alto impacto com essa obrigação de manter grande número de publicações, como o que se está a exigir atualmente5.Na realidade, os prejuízos são elevados e tendem a ferir o coração (ou núcleo duro) de todo o sistema de produção de conhecimento. As investigações extensivas, que não produzem resultados imediatos, devem ser descartadas. Os "produtos" (artigos oupapers) tornam-se um fim em si mesmos, deixando em segundo plano ou fazendo esquecer que deveriam ser, na realidade, os meios para publicar as descobertas, inovações e avanços no conhecimento (Bueno, Carvalho, & Aquino, 2002).

Um número crescente de autores por artigo é outro artifício bastante empregado, o que significa, naturalmente, mais do que o saudável aumento do número de membros nos grupos de pesquisa, a prática da troca de autoria ("meu nome em seu artigo e seu nome no meu", por exemplo) (Castiel et al., 2007, p. 3042).Já não são raras as denúncias sobre fraudes. De acordo com Oliveira (2010), a fraude científica se apresenta sob a forma de três delitos principais:

A Fabricação de dados, quando o pesquisador cria totalmente os dados experimentais para validar suas hipóteses; a Falsificação de dados, quando os dados experimentais são manipulados de forma a se tornarem adequados para justificar a hipótese testada e o Plágio, quando se apropria de trabalhos de outros pesquisadores ou equipes sem os citar. Além destes desvios de comportamento, há outras atitudes desaconselháveis como destruir os dados originais, esconder parte de resultados não adequados aos interesses do pesquisador, não indicar um conflito de interesse, ou exercer abuso de poder sobre um estudante. (Oliveira, 2010, p.2)

4. Os impactos específicos da produtividade, tal como vêm se constituindo, também são significativos nas Ciências Humanas e Sociais. Há muitas críticas, primeiramente, sobre a validade da valorização da produção internacionalizada nesse campo do conhecimento, pelo menos com o mesmo peso que tem em outros ramos. Seus pesquisadores lidam frequentemente com questões relacionadas à realidade "local", num âmbito definido por fatores específicos de tempo-espaço; portanto, sua distribuição internacional não é, necessariamente, a mais conveniente, muito ao contrário, é no país que sua leitura adquire o potencial de crítica e de transformação.

Nas Ciências Humanas e Sociais também ocorre forte resistência e descontentamento com a adoção de enfoques bibliométricos. Há que se considerar que nessa grande área tem-se uma cultura antiga de valorização da publicação de livros e capítulos de livros. No entanto, no presente, a urgência em apresentar produtos tem tornado difícil a publicação de livros, pois para escrevê-los é preciso "mais atenção, mais tempo de preparação, mais pesquisas" (Bianchetti & Machado, 2007, p. 10), e absurdamente livros e capítulos têm um valor mais baixo na classificação de pesquisadores e dos programas de pós-graduação.Sobre esse aspecto, Hutz et al. (2010) apresentam resultados um pouco distintos para a área de Psicologia em relação às demais Ciências Humanas e Sociais. Para os autores,

a produção de livros e capítulos é parte significativa da produção da área, mas os artigos representam o tipo de produção mais incidente. Assim, a maior parte da produção pode ser considerada, grosso modo, como constituída por publicações arbitradas. Tal realidade dá à área feição um pouco distinta das demais que integram a Grande Área de Ciências Humanas, nas quais o equilíbrio entre artigos e livros/capítulos é maior, ocorrendo até mesmo predominância destes itens sobre aqueles. (p.27)

5. Por último, mas não menos importante, é o enorme sofrimento físico e emocional dos investigadores e outros envolvidos com o processo de produção de conhecimento no Brasil. O ritmo, a intensidade e os valores com que se desenvolve a ciência têm sido responsáveis por inúmeros casos de transtornos mentais e físicos.

Em particular, o movimento da concorrência desenfreada pela ascensão do conceito dos programas de pós-graduação, tanto a nível individual como institucional, acarreta consequências graves para a saúde de todos os envolvidos, dado o ambiente de isolamento e de hostilidade no local de trabalho causado por valores individualistas (Luz, 2004).

Considerando que toda essa produção e competição por verbas ocorre principalmente – mesmo que não exclusivamente – na pós-graduação, cujo sistema localiza-se, como já apontado anteriormente, na rede pública, é basicamente nesse lócus que todo esse cenário se desenvolve, provocando efeitos internos de prevalência de interesses privados sobre os públicos.

Considerações finais

A ciência moderna – como o direito moderno republicano – nasceu e prosperou quando o espaço público foi suficientemente libertado da tirania dos interesses e razões privadas (Doménech, 2009). A investigação científica é incompatível com o privilégio, razão pela qual deve correr ao largo da "tirania" de motivos particulares (sagrados ou não), e só pode florescer e prosperar em ambientes culturais que criam e protegem grandes espaços institucionais, que bem defendidos da tirania ou da atração de interesses privados, possibilitem a razão pública e a deliberação coletiva (Doménech, 2009).

Portanto, a produção contínua de propostas inovadoras, que são renovadas sem cessar, uma expressão do progresso científico, fonte contínua da ciência moderna, só é possível quando há uma certa liberdade na produção, permitindo o surgimento de novas criações, gênese da inovação científica, assim como da arte. E essa liberdade implica preparação, escolha de procedimentos, avanços e pausas durante o desenvolvimento das principais atividades de investigação, que variam entre os diferentes ramos da árvore do conhecimento. 

Os pesquisadores, apesar de todos os esforços para serem "produtivos", não são máquinas. Acima de tudo, não são máquinas da concorrência para reduzir custos na produção de produtos renováveis a intervalos cada vez menores (Luz, 2005). No entanto, o financiamento da investigação fornecido por editais induzidos, que definem os temas de investigação, a metodologia a ser seguida pelos pesquisadores e a lista de "produtos" que devem resultar do processo de pesquisa (os resultados) afetam indelevelmente a liberdade de que se falou. A burocratização progressiva da ciência é o efeito colateral desse processo indutivo que "está se tornando uma corrente de ferro que impede a produção verdadeiramente criativa e inovadora" (Luz, 2005, p. 44).

Com tal dinâmica, é também inevitável que o "jogo" do mercado – com seus elementos competitivos e regras consistentes de competitividade vigentes nas atividades comerciais das várias partes do mundo capitalista – se espraie pela academia. As notas atribuídas aos programas de pós-graduação, por exemplo, introduzem uma competição por recursos (sempre insuficientes para todos) entre pesquisadores da mesma área, intensificando a pressão sobre eles e seus alunos, promovendo uma verdadeira "caça às bruxas" (Silva Júnior, Sguissardi, & Pinto e Silva, 2010, p. 15) em relação àqueles considerados improdutivos.

Enfim, frente aos inúmeros problemas e impactos indesejáveis que o produtivismo acadêmico vem provocando nos pesquisadores, grupos de pesquisa, programas de pós-graduação e na própria produção de conhecimento, já é tempo de se refletir com maior criticidade e seriedade sobre o tema, mesmo que se saiba que a oposição e resistência coletiva a todo este quadro sejam difíceis, já que importantes segmentos universitários aderiram, pragmaticamente, à tese de que em não se podendo reverter o processo em curso, deve-se atenuá-lo para si, o que significa, trocando em miúdos, tornar-se um professor empreendedor e produtivista (Mancebo, 2010).

Acreditamos que as questões colocadas por Bourdieu (2004) na epígrafe deste texto sejam um bom início de reflexão, fazendo-se necessário avançar na análise das condições históricas do trabalho docente nas instituições brasileiras, na reflexão, nas denúncias sistemáticas e nas iniciativas cotidianas de combate ao produtivismo, à mercantilização e à cultura individualista que assolam as instituições de educação superior.Uma ação "antiprodutivista" foi tomada recentemente pela área de Psicologia, digna de registro e de reflexão para outros campos do conhecimento:

A área adotou, tanto na CAPES como no CNPq, o procedimento de fixar um teto de produção a ser considerado para efeito de avaliação. Atingido o limite (de média de itens de produção por docente permanente do Programa no triênio; de quantidade de itens de produção por docente no qüinqüênio, no caso do CNPq) os itens de produção excedentes são descartados, mantendo-se sempre, para efeito de avaliação, os itens de maior peso de acordo com a qualificação estabelecida pela área. A idéia é sinalizar que a publicação de trabalhos com maior densidade (em periódicos mais qualificados, em coletâneas que não sejam simples ajuntamentos, em livros bem cuidados) é estratégia que trará melhores resultados do que publicar muitas coisas fragmentadas de forma não criteriosa, apenas para aumentar o número de itens lançados no currículo. (Hutz et al., 2010, p. 31)

Ainda não foi possível aferir se tal medida já produziu algum efeito nos padrões de publicação dos pesquisadores da área, em especial quanto à coibição da desenfreada competição, na busca por financiamentos, bolsas e notas da pós-graduação. Em princípio, considera-se que tal procedimento deve ser mantido e seus resultados analisados, mesmo que se desacredite que uma decisão técnica e isolada (ainda que lúcida e acertada como essa) possa mudar estruturalmente as condições heteronômicas, competitivas e individualistas nas quais os docentes se veem envolvidos.

Considerando que a insuficiência de recursos – aspecto central de toda essa discussão – permanece intocada e que a avaliação continua com suas funções classificatórias e rankeadoras para fins diversos, é bem provável que mudanças substanciais não ocorram, mas tão somente reacomodações, possivelmente, na direção da luta por publicações nos espaços editoriais mais distintos, que só os pesquisadores já no topo da pirâmide alcançarão, deixando à mingua tanto os docentes que não o conseguirem como as revistas medianamente ou mal avaliadas.

Desse modo, reitera-se a epígrafe de Bourdieu, bem como a imperiosa necessidade de se retomar a avaliação das avaliações (meta-avaliação?), pela via de uma conceitualização política, crítica e comprometida que, "sin abandonar la lectura de los procesos que se desarrollan desde abajo, aborde el desafío de pensar en términos macro-sociales y estructurales las posibilidades de una política instituyente" (Svampa, 2007, p. 2).

 Responsabilizar-se, portanto, pela ampliação de categorias teóricas, sínteses explicativas mais fortes, críticas, que potencializem a ação coletiva de contestação e a mudança radical.

Notas
1 Sobre essa temática, recomenda-se a leitura do livro Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico, de Valdemar Sguissardi e João dos Reis Silva Júnior, publicado pela Xamã Editora, em 2009.

2 Dados obtidos no site da CAPES. Acesso em 20 de junho, 2010, emhttp://www.capes.gov.br/sobre-a-capes/estatisticas


3
 Em alguns documentos, o V PNPG é simplesmente designado por PNPG 2005-2010, possivelmente por uma tentativa de apagar da memória o IV PNPG (1998-2002), que apresenta uma história curiosa. No ano de 1996, a CAPES distribuiu à comunidade acadêmica um documento de 138 páginas intitulado Discussão da Pós-Graduação Brasileira. Nele, especialistas apresentavam estudos sobre tópicos que, na perspectiva da agência, resumiam os pontos fundamentais para uma discussão nacional que daria origem à formulação do IV PNPG. Em 1997, no número especial do INFOCAPES é publicado o documento final consolidado e, com base nessas e outras contribuições, o IV PNPG foi redigido e enviado às pró-reitorias, considerando a vigência de 1998 a 2002. Todavia, a despeito do fato da CAPES ter em seus arquivos um documento que consolida o IV PNPG, datado de 1998, a aplicação do plano foi pouco discutida, e é significativo que boa parte dos participantes do processo não tenham memória do IV PNPG e que não se consiga identificar, consensualmente, uma política nacional de pós-graduação que houvesse tido origem no documento.

4 Um dos critérios mais fortes dessa classificação é o uso do Fator de Impacto (IF): um score calculado pela Thomson Reuters, que indica a frequência com que um trabalho em determinada revista é citado na literatura da área. Quanto maior o número de citações, maior a importância do trabalho e da revista. O problema é que o fator de impacto não mede a qualidade do trabalho - só o seu efeito.5 Castiel e Sanz-Valero (2007, p. 3045) fazem menção a um texto "curioso" sobre o assunto. Trata-se de um artigo do neozelandês Tim Albert, traduzido do inglês especialmente para a revista espanhola Gaceta Sanitaria. O artigo apresenta uma receita de dez passos, que se assemelha a manuais de autoajuda, com conselhos sobre como ganhar o jogo "de escrever artigos científicos". Existe uma declaração de que "é uma atividade de vendas" e que "a tarefa é criar um produto ... científico e vender para o cliente".

Referências

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