Agressor ou vítima de uma educação frágil?

Agressor ou vítima de uma educação frágil?

Agressor ou vítima de uma educação frágil?

Rosane de Souza 



 

Falta de diálogo na família, transformações no formato da escola... de onde vem a força dos valentões?

 

 
 


Em uma escola carioca, todas as semanas os estudante se reúnem para refletir sobre questões de cidadania


Quase um século depois de Alexander Sutherland Neill ter criado a escola Summerhill, que ficou conhecida como a primeira democracia infantil, por ensinar as crianças a lidar com as diferenças, estimulando os alunos a elaborar as próprias regras de convivência, professores, pedagogos, psicólogos e dirigentes de colégios – até mesmo daqueles que adotam conceitos libertários como os estabelecidos pela instituição escocesa em 1921– ainda discutem de que forma educar para o respeito ao outro. O crescimento e o agravamento dos casos de bullying, em todo o mundo, obrigaram a sociedade a encarar o problema e a refletir sobre formas de evitar que a prática da hostilidade e da violência continue a contaminar as mentes de crianças e adolescentes, dentro e fora das salas de aula, a ponto de levar diretores, professores e estudantes para o banco dos réus das varas de execução penal.

Pelo Brasil afora, colégios e estudantes estão sendo condenados a indenizar suas vítimas, alunos são expulsos de escolas públicas e alguns encabeçam a lista dos principais suspeitos de assassinatos ou indução ao suicídio dos alvos de um fenômeno tão velho quanto a educação coletiva, mas hoje, aparentemente, incontrolável, perigoso e mortal. “A realidade do bullying está oculta e é mais perigosa que qualquer doença que conhecemos”, diz o advogado Danilo Sahione, especialista em direito educacional e responsabilidade civil, além de sócio de um escritório que defende uma escola obrigada judicialmente a pagar indenização a uma estudante agredida em suas dependências.


Em recente pesquisa com estudantes de todo o país, a organização não governamental Plan encontrou um cenário muito preocupante: 100% dos alunos presenciaram agressões pelo menos uma vez. Mais frequentes no 7o ano do ensino fundamental, atingem particularmente jovens de 11 a 15 anos e predominam nas escolas privadas, onde foram registrados 39,9% dos casos – contra os 29,5% detectados pelo IBGE nas escolas públicas.


Fenômeno mundial

Esses números não deixam dúvida: os pais precisam prestar atenção ao problema, se informar sobre as características das práticas de hostilidade e ficar atentos a sinais que permitam detectar rapidamente se seus filhos estão sendo vítimas ou algozes de comportamentos humilhantes. Conceito intraduzível para o português, com origem no adjetivo inglês bully (valentão), o bullying se manifesta pelo uso do poder ou da força física para intimidar, submeter, humilhar, implicar, perseguir e, finalmente, excluir alguém. É um fenômeno de comportamento que atinge países de todo o mundo, mas que só agora virou dor de cabeça no Brasil.


Pesquisas internacionais indicam que de 5% a 35% dos estudantes do planeta estão envolvidos em agressões contra algum colega mais frágil. De acordo com a Academia Americana de Pediatria, de 2001 a 2006, houve um aumento de 50% nos casos de cyberbullying – assédio violento pela internet.


Em 2007, o cyberbullying atingia 32% dos jovens, segundo estudo da Pew Research. Um levantamento feito no Rio de Janeiro, ano passado, pela SaferNet Brasil, ONG voltada ao combate às violações de direitos humanos na internet, apontou que 30% dos adolescentes conheciam alguém vítima da violência pela internet. Essa forma de bullying talvez seja mais perigosa do que a prática presencial, no ambiente escolar, pela dificuldade de reconhecer os agressores e pela potência do seu alcance. Outra consulta realizada no Rio, pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), a 8.482 alunos de 11 escolas públicas e privadas, entre novembro de 2002 e março de 2003, constatou que mais de 40% admtiram ter sofrido ou praticado bullying.


Para o advogado, o grande desafio, hoje, é distinguir exatamente o que é bullying, diferenciá-lo de meras brincadeiras infantis ou mesmo de crimes já há muito previstos no Código Penal. “As agressões e humilhações estão dentro de salas de aula, na política, em programas de TV, em campeonatos de vôlei e bem perto de cada um de nós”, esclarece. A educadora Cléo Fante, autora do programa “Educar para a Paz” e do livro Fenômeno Bullying (Ed.Verus), elenca cinco fatores que identificam o bullying: a intenção de causar danos; a persistência e a continuidade das agressões contra o mesmo alvo; a falta de motivos que justifiquem os ataques; a diferença de poder e força entre as partes; e, finalmente, os prejuízos causados às vítimas. “Em geral, o agressor é mais velho e mais forte que sua vítima. Existe um desejo de poder e domínio, uma necessidade de afirmação pela violência física, verbal ou moral. E ele acredita na impunidade de seus atos”, revela o psiquiatra Gustavo Teixeira, autor do Manual Antibullying – Para alunos, pais e professores (Ed. BestSeller).


Os números brasileiros e a forma das agressões, segundo Danilo Sahione, batem com estatísticas internacionais: “As vítimas são tímidas, de ambos os sexos, na faixa dos 11 anos, com alguma característica marcante, seja comportamental ou física. Já os agressores estão na faixa de 14 anos e, em muitos casos, gostam de mostrar poder, exercer liderança entre grupos de amigos. Boa parte deles, quase sempre de meninos, foi mimada pelos pais na infância”, explica. As meninas são capazes de arquitetar planos que vão desde a simples fofoca até intrigas e outras ações que culminam com perseguições. Algumas vítimas chegam a deixar a escola.


Outra pesquisa, realizada no interior de São Paulo pela própria educadora Cléo Fante, revela que 49% dos 1.761 alunos entrevistados praticaram ou relataram o sofrimento com algum tipo de bullying. “É uma forma de violência que acontece em qualquer lugar”, diz Cléo Fante. Na opinião dela, as escolas não estão preparadas para enfrentar o problema, embora não se possa responsabilizá-las, e muito menos à família. “Não existem programas efetivos. O que encontramos são ações pontuais”, afirmou, em audiência pública realizada, em maio, pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, na qual se discutiram as consequências do bullying, do preconceito e da discriminação na vida social e escolar dos estudantes.



No conteúdo curricular


Na origem do problema, educadores identificam questões estruturais da Educação contemporânea. Ângela Dias, coordenadora do ensino fundamental 2 de um colégio do Rio de Janeiro, chama a atenção para “as transformações ocorridas no formato da escola, a partir da hegemonia do ensino privado”. Hoje, diz ela, os pais pagam as escolas e se acham no direito de fazê-las atuar à sua semelhança. “Questionam regras da instituição, posturas dos educadores, dando aos filhos a liberdade de também fazê-lo”, acrescenta. Some-se a isso uma nova geração de pais superprotetores dos filhos, críticos constantes do ensino e do ambiente escolar. “Assim se criam meninos com uma ética flácida, sempre em busca de benesses e prazeres a todo custo e imediatos, com imensa dificuldade de lidar com a diferença. O gordinho passa a ser objeto de intolerância. O que poderia facilmente ser discutido entre eles se converte em perseguição”, assinala a educadora.


Emília Fernandes, diretora da mesma escola, acrescenta que, em geral, o relacionamento interpessoal, em casa, é superficial. Falta incentivo às manifestações de sensibilidade, não se compartilham sentimentos: “É a desumanização da família: não há diálogo, quase nenhuma troca ou discussão, os pais não têm tempo para acompanhar a vida dos filhos”. Ela considera natural que a agressividade venha à tona na escola, por ser o lugar onde acontece a primeira experiência de vivência do confronto e da diferença: “São meninos frágeis”, diz. Ângela avalia ainda: “Como a Igreja foi para escanteio e os pais desistiram de exercer sua autoridade, a escola, hoje, muitas vezes tem assumido sozinha o papel de educar crianças.


Em um duro combate ao bullying, a escola onde trabalham Ângela e Emília deu um exemplo de visão pedagógica: incluiu o tema do bullying na grade curricular, passou a incentivar mais as assembleias dos alunos, a realizar frequentes conversas sobre o assunto. A diretora Emília acredita que “a escola é, por natureza, um lugar inclusivo e de ajuda à formação e à preparação de crianças e jovens para a vida”. Por isso, há pouco tempo, convocou pais e filhos para uma sessão do filme As melhores coisas do mundo, de Laís Bodanski, que aborda os dramas, os medos e as descobertas na vida de adolescentes. A sessão foi seguida de um debate com a participação de educadores, advogados, psicanalistas e representantes do Observatório Jovem da Universidade Federal Fluminense (UFF).


Nessa escola, o bullying entrou para o currículo escolar. Todas as semanas, os estudantes se reúnem para uma atividade de reflexão sobre o que é estar no mundo, ser adolescente no século 21 e como construir seu espaço. “Faz parte de nossa proposta, de nosso projeto político e de organização não deixar passar em branco nenhuma tensão. E há uma enorme sinalização de saúde quando um garoto, humilhado, se defende”, diz a diretora. A escola, que tem 650 alunos, com média de 25 a 30 em cada sala, teve a confirmação de que trilhava o caminho correto na luta contra a violência entre os estudantes quando um aluno homossexual, recentemente matriculado, compartilhou a alegria de estudar lá: “Há três anos eu busco um espaço para ter sossego, para ser do jeito que eu sou”. O psiquiatra Gustavo Teixeira conta que os casos de bullying são cada vez mais frequentes em seu consultório, no Rio de Janeiro. No livro, ele enumera 20 estratégias para lidar com o problema, perceber os sintomas das vítimas e dos agressores. “Os pais devem estar atentos às mudanças de comportamento do filho ou da filha”, aconselha. São sinais de alerta, por exemplo, a criança ou o jovem estar entristecido e desmotivado com a escola; ter poucos amigos; passar o recreio sozinho; ter medo de ir à escola; chegar em casa com o material escolar avariado; evitar atividades na escola, como grupos de estudo, passeios ou práticas esportivas; ser xingado, ridicularizado ou receber apelidos pejorativos; e apresentar queda no rendimento acadêmico.


Estratégias
As escolas e as secretarias de Educação, por sua parte, devem instrumentar os educadores para lidar com o problema. Segundo Cléo Fante, é preciso pensar estratégias, promover cursos e formar multiplicadores, para preparar profissionais e até mesmo pais. “Em geral, eles só veem os filhos como anjinhos ou vítimas. É difícil reconhecerem que os filhos fazem bullying”, afirma. 


Outra proposta de efeito evidente, descrita no manual do psiquiatra, é a de separar os praticantes de bullying uns dos outros. Em geral, eles agem em bandos, como os pardais, pássaros predadores que enxotam das cidades seus semelhantes mais frágeis. Teixeira, que é também professor da Universidade Bridgewater, nos Estados Unidos, aconselha aos educadores supervisionar o ambiente escolar: “Ao identificar estudantes tímidos, retraídos e com poucos amigos, podemos realizar um trabalho de treinamento em habilidades sociais e estimular a prática de esportes coletivos, por exemplo. Assim, capacitando professores e pais, desenvolvemos estratégias importantes na prevenção do bullying nas escolas”.


Criminalizar resolve?


Apesar das abordagens pedagógicas, há quem veja no bullying apenas mais uma face do crime. Promotores da Infância e Juventude de São Paulo apresentaram um anteprojeto de lei que qualifica a prática como criminosa, com pena variando de um a quatro anos, além de multa. O texto, apresentado durante o 1o Simpósio Brasileiro sobre Bullying, realizado em maio, em São Paulo, sugere a inclusão do bullying entre os crimes contra a honra, previstos no Código Penal. A proposta dos promotores foi rejeitada por educadores e também por alguns advogados. Para os primeiros, os casos de agressão física ou psicológica devem ser tratados e resolvidos dentro das escolas. “Escola não é lugar de polícia”, afirma a diretora de uma escola carioca, Emília Fernandes.


A pedagoga Cléo Fante também acredita que a imensa maioria dos casos deve ser resolvida dentro da escola. E o advogado Pedro Pereira, representante da Ordem dos Advogados do Brasil – RJ no Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca), argumenta que o Código Civil já prevê punições suficientes, em casos de danos morais. “Ninguém precisa de uma lei em relação ao bullying. Reduzir tudo a uma questão legal, criar punições e penas não transforma a realidade. Também não é necessário judicializar e trazer para o âmbito da polícia o que pode ser resolvido nas escolas”, diz.


Apesar da polêmica, o governo do Rio sancionou uma lei que obriga diretores de escolas públicas e particulares de todo o estado a notificar os casos de bullying à polícia e ao Conselho Tutelar. Quem não cumprir a medida estará sujeito a multas de três a 20 salários mínimos – pena prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para os casos de omissão e de maus-tratos. A nova lei engloba agressões físicas e psicológicas contra os jovens, repassando para os estabelecimentos de ensino um modelo de notificação compulsória de violência contra crianças e adolescentes que já era adotado em unidades de saúde. Determina que os procedimentos sejam feitos sob sigilo, junto a delegacias e ao Conselho Tutelar. Um formulário-padrão deve
ser usado para as notificações feitas pelos estabelecimentos públicos e privados.


“O ECA já prevê as denúncias de suspeita de maus-tratos ao Conselho Tutelar: “Essa lei apenas reforça o Estatuto. Mas não basta a denúncia nesses casos; é importante que se trabalhe para interromper os maus-tratos, criando também canais de orientação e de denúncias, para que as vítimas se sintam seguras para procurar ajuda”.


Pereira, que também é coordenador do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca), alerta para a confusão jurídica em torno do assunto, uma vez que o próprio ECA determina que as escolas comuniquem os casos de reincidência das agressões, depois de esgotados todos os recursos pedagógicos e disciplinares.


http://www.guiasdeeducacao.com.br/boaescola/39/agressor-ou-vitima-de-uma-educacao-fragil?

 




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