Campo minado

Campo minado

... Ao atribuir o valor de espíritos ilustres aos pedagogos, Arthur Schopenhauer não quis posicioná-los num patamar inatingível, mas alertá-los de que suas posições na sala de aula devem ser as de maior lucidez, sempre...

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Segundo o filósofo Arthur Schopenhauer, "Em relação aos espíritos ilustres, é muito natural que esses verdadeiros educadores do gênero humano sintam tão pouca inclinação a pôr-se em comunicação frequente com os demais, como pode sentir o pedagogo ao participar das brincadeiras ruidosas das crianças que lhes rodeiam.

Porque nasceram para guiar a humanidade através do mar de erros até o céu da verdade e conduzi-la do negro abismo de sua grosseria e vulgaridade até a luz da cultura e do refinamento.

É verdade que devem viver entre eles, porém sem nunca pertencer-lhes realmente.

Desde sua juventude, sentem-se sensivelmente diferentes dos demais, mas apenas lentamente e com o passar do tempo chegam a compreender com nitidez sua posição.

Então cuidam para que seu isolamento intelectual também seja reforçado pela distância física, e para que ninguém se aproxime deles, senão aqueles mais ou menos livres da vulgaridade em geral.

Resulta disso tudo que o amor à solidão não se apresenta diretamente e na forma de um impulso primitivo, mas se desenvolve indiretamente, em particular nos espíritos distintos, e apenas gradualmente.

Esse desenvolvimento não é alcançado sem que dominemos o instinto natural de sociabilidade, por vezes opondo-lhe a sugestão de Mefistófeles:

Cessa de cultivar tua pena que, semelhante a um abutre, te devora a existência; a pior companhia te faz compreender que és um homem entre os demais. (Fausto, Goethe, Parte I., 1281-5.)"...

Numa transcrição objetiva ao que tentou dizer Schopenhauer nos primeiros parágrafos do texto, afirmo não ser difícil notar que, para este, a educação é, sobretudo, transformadora.

Professores das redes municipais, estaduais e privadas reclamam da real e grave situação de educadores; desde sempre e atualmente ainda pior, nas salas de aula do Brasil.

A questão é que reclamam sem colocarem-se enquanto, também, agentes da mesma.

São muitos os casos de violência nas salas de aula.

Há pouco tempo tomei conhecimento de um desses casos ao ler uma matéria de um jornal brasileiro, onde denunciava ocasiões de violência sofridas pelos professores em escolas brasileiras, sejam estas públicas ou particulares, apresentando também depoimentos gritantes sobre o assunto.

Como experiência própria, já ensinei numa escola pública situada num bairro periférico de Salvador, na Bahia, escola esta que provia de uma direção muito boa, onde com muita competência imprimia, não em totalidade, mas, em boa parte de seu desafio, bastante controle no que diz respeito à disciplina.

Meu primeiro dia por lá foi quase perfeito, a não ser quando adentrei à sala da turma 7ºA, do Ensino Fundamental II.

Havia muita euforia na ocasião e, em meio a quase quarenta alunos, era preciso amenizar os ânimos para aproveitarmos os curtos cinquenta minutos de aula que tínhamos.

Quando, em dado momento, me dei conta de que não estava conseguindo completar ao menos a lista de presença e fui forçado a exigir mais disciplina a alguns alunos, responsáveis pela maior parte do tumulto.

Meu gesto, ainda que consciente e educado, não foi bem visto pela maioria que não estava interessada em estudar.

Obviamente, eu não estava conseguindo desenvolver a aula no dia em questão, também não levei a situação à direção, demonstrei apenas um pouco de tristeza e falei-lhes sobre o dilema na educação brasileira, apresentado-lhes, simultaneamente, dados que indicavam a falta de educação como grande responsável pela decadência social, cultural e econômica do país.

Porém foi inútil no momento, pois como não havia ocorrido tragédia física, a exemplo da situação com o professor de biologia noticiada na matéria do jornal que citei acima, onde o aluno arremessou uma placa de azulejo em seu rosto, poucos prestavam a atenção na aula.

Então esqueci um pouco a minha aula e comecei a falar da realidade na periferia, me envolver um pouco na atmosfera dos alunos, falar a linguagem deles, da sua cultura, do que gostam de fazer etc.

Foi quando percebi que eles começaram a me escutar.

A sirene tocou, a "aula" encerrou e o clima ficou com um tom de reflexão entre eles.

Em minha segunda aula, nesta mesma turma, todos pediram-me desculpas, desejaram-me boas vindas e foram mais dedicados à aula.

Ou seja, creio que em muitos casos da realidade na educação brasileira o professor não deve ser apenas um orientador, mas, quando necessário, um assistente social, bem como um líder comunitário etc.

Entendi, contudo, que em muitos casos na sala de aula, é preciso, antes de tentar ensiná-los teores meramente didáticos, aprender com eles sobre suas experiências de vida ao mesmo tempo que os ensina.

Na maioria dos casos, seja em escolas públicas ou privadas, os alunos são consequência de ações ainda mais impiedosas: como o descaso, por exemplo. Logo, é necessário conquistar suas confianças antes de lhes dizer o que é preciso fazer para se tornar um bom cidadão.

Alunos precisam sentir segurança e acreditar no professor, para a partir de então segui-lo.

É claro que tal postura não o livrará de ser apreendido como um racista se, por um acaso, em meio a uma aula de arte, você evitar o contato físico com um aluno negro que tem as mãos meladas de tinta, apenas para manter-se limpo. Uma vez que necessitará manter-se limpo para em seguida se deslocar e dar aula em outra escola.

Quer dizer, quando não existe clareza sobre os fatos através de devida orientação perante recorrentes situações de racismo no Brasil, e no mundo, para ser injustiçado basta sair de casa.

O que tento dizer, portanto, reforçando mais uma vez as palavras de Schopenhauer, é que muitos professores no Brasil são capacitados para lecionar a disciplina de suas especialidades, mas não entendem a importância da pedagogia para lidar com crianças ou adolescentes.

É muito comum, em meio aos diálogos de intervalos nas salas de professores, deparar-se com docentes criticando uma aluna de 15 anos porque esta troca de namorado por mês.

Bom, se na adolescência não for o período para erros e experimentos, onde será? Na fase adulta, quando casados?!

Adultos em geral não devem esquecer que um dia foram crianças ou adolescentes, pais e professores, em especial, é que não devem esquecer desta passagem em suas vidas.

Muitos professores portam-se pior do que alunos, embora seja preciso dizer que o aluno está na fase de assim se portar, o professor, não mais.

Dentre toda carga de dramaticidade envolta aos personagens que impulsionam a decadência na educação brasileira, a menor deve encontrar-se nas costas do aluno.

Fala-se muito, agora ainda mais, sobre a necessidade de uma reforma política no país, mas enquanto não se refletir sobre uma reforma em sua pedagogia, a partir do lar, das instituições de ensino, até os docentes, "reformas" políticas virão, ou não, e o Brasil sequer dará "meio" passo a diante, pois sem entender o real significado das palavras, não será possível enxergar melhor o mundo.

Ao atribuir o valor de espíritos ilustres aos pedagogos, Arthur Schopenhauer não quis posicioná-los num patamar inatingível, mas alertá-los de que suas posições na sala de aula devem ser as de maior lucidez, sempre.

Quando providos de maior lucidez numa situação perante quem não apresenta lucidez alguma, não devemos, enquanto orientadores, nos predispor como se fossemos superiores, ou, mais agravante, nos equiparar aos mesmos.

Ao contrário, se somos parte deste corpo transformador que é a educação, devemos saber sobre os desafios que nos espera em nosso dia-a-dia, pois uma vez conscientes, é preciso pensar por quem a consciência ainda não tem.

O fato é que, um professor nunca deve esquecer, por mais idade que possua, sobre não ser possível saber a respeito de todas as coisas contidas na idade do mundo. Por isso a importância de, parafraseando Sócrates, sabermos que, de fato, nada sabemos.

Uma vez consciente disso, logo saberá que nunca deixará de ser aluno.

E a partir de então, quando necessário, também saberá a hora de romper o muro que costuma impor entre a mesa do professor e as carteiras dos estudantes, podendo pensar colocando-se na posição de um aluno para, ao contrário de julgar, ter melhores condições de os problemas solucionar.

foto por tito oliveira

TITO OLIVEIRA

Para mim a escrita é o elo que liga a fala aos mais remotos e atentos olhares, ou ouvidos. É como superar a necessidade de ser escutado imediatamente. Não sou um escritor, escrevo porque sou artista, escrevo porque penso, porque sinto, porque desejo. Porque enquanto aprendia a escutar o mundo, aprendi, com isto, também a me escutar. 


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